domingo, 11 de janeiro de 2015

Capítulo Seis

ANTES DO CASAMENTO


Infelizmente o sarau não aconteceu. A monarquia brasileira foi desposta, a República promulgada e a família imperial deportada. Catarina chorou, sofreu. Como viver em um mundo sem cortes, sem paços reais? Como conhecer calmamente seus deuses e decidir por um dos dois, se a cidade estava paralisada com a surpresa dos fatos e ela sendo retirada de lá e mandada para a fazenda?
A viagem fora uma decisão do tio diplomata. Receoso com os acontecimentos, mandou a esposa e a sobrinha para a propriedade dos cunhados e ficou na cidade. Precisava compreender que República havia sido implantada no país e posicionar-se de acordo com as diretrizes do seu governo, o inglês.
Feliciano, o pai de Catarina, teceu considerações sobre o momento nacional.
-- Já estava na hora de mudanças.
-- Mas, pai! Um rei reina. É muito mais que um presidente.
-- A diferença é outra, filha. Não faz sentido um país ser dirigido por razões de sangue. Para o bem e para o mal, cabe ao povo decidir quem será o chefe da nação.
-- Não importa o regime?
-- Não, desde que seja eleito e defenda as liberdades dos homens e do cidadão.
Morta a monarquia, viva a república! A jovem voltou para a cidade, decidida a se reencontrar com seus deuses para escolher aquele que conjugasse, em maior abundância e de modo coincidente, linhagem, posses e projeção pessoal nos novos tempos.
O retorno foi frustrante. Valentin já partira para Paris e Theodoro em breve estaria lá, para também se especializar em leis e melhor se preparar para uma carreira que iluminava seus olhos e ofuscava o brilho de qualquer outro esplendor.
Nesse cenário a tia-madrinha freou os ímpetos da sobrinha. Considerava as condições inapropriadas para sondar interesses de casamento e tentar alinhavar um compromisso. Uma recusa poderia manchar a reputação da jovem na arena matrimonial. A situação exigia outra abordagem. A pretendente deveria agir para tornar-se uma lembrança indelével de Theodoro e encantar os pais dele durante sua estada no exterior. Não faltariam ocasiões para tanto, como também para identificar novos candidatos: -- não se fie em um só, até que um bom partido esteja na sua mão, disse-lhe a tia.
Conforme Catarina cumpria à risca esses conselhos, o prestígio do tio ampliava-se, impulsionado pelas articulações bem-sucedidas que fazia, em prol de investimentos ingleses no país. Tal realização a tornou um alvo cobiçado entre os jovens cavalheiros que buscavam firmar boas alianças matrimoniais. Porém, sem sentir o arrebatamento vivido ao conhecer Theodoro e Valentin, temeu ser incapaz de resistir às investidas dos outros pretendentes. Se em desvantagem com relação aos trunfos maritais dos deuses, aqueles candidatos estavam presentes e cheios de vontade de alimentar suas fantasias sensuais, que já clamavam por algum tipo de nutrição.
Uma vez mais a vida conspirou a favor da jovem. Aos dezenove anos, viajou para Londres e visitou Paris, onde soube que Theodoro acabara de viajar para os Estados Unidos da América, mas que Valentin estava lá – e logo mais ao seu lado. Surpreendeu-se com o fato de ele ter desistido do direito e com os seus hábitos. Vivia na boemia e se revelou um leitor voraz de Nietzsche, filósofo alemão, de quem repetia que a vida dança aos pés do acaso – do incerto, aleatório e súbito.
-- Só a arte pode apaziguar essa falta de controle, Catarina, e creia: poucos mortais conseguem encarar a verdadeira face da existência sem uma máscara qualquer, seja a da religião, da política, da ciência ou a da própria arte. A maioria precisa delas para não morrer da verdade.
Às vezes, Valentin era um lago sereno de cristalina sabedoria. Outras, um rio caudaloso de intensas emoções.
Instantaneamente Catarina percebeu que continuava diante de um deus, porém de domínios impróprios para ancorar seu desejo de casar. A percepção foi tão contundente e o deus era tão belo, que aceitou o fato sem tristeza. Acolheu com entusiasmo a oportunidade de conviver com esse ser, que desordenava os ditames estabelecidos sobre o modo certo de encarar a vida, ao mesmo tempo em que lhe oferecia a mais inusitada diversão. Numa ousadia, tomou o braço do amigo e seguiu com ele para o mundo das artes, dos salões literários e dos bares, onde pintores, poetas, escritores e mulheres independentes se reuniam, debatiam sobre tudo e bebiam muito.
Como um dia sucede ao outro, Theodoro retornou. Comprovou que Catarina tornara-se ainda mais encantadora do que as lembranças que guardara da jovem de olhar docemente febril. Da mesma forma como a lua reflete a luz do sol, desejou brilhar para aquele astro e ofuscar o outro, Valentin. Entrou em ação, como uma locomotiva que desliza velozmente sobre os trilhos. Rompeu distâncias, mudou o itinerário e se deslocou ao encontro do seu alvo, com a mesma facilidade de um automóvel. Ocupou todos os espaços da conquista, como a luz elétrica, ora de modo imperceptível, ora de forma inequívoca. Ouviu sem interrupções, como um telefone, e, respondeu, às vezes, com a objetividade de um telegrama, outras, com a magia de um fonógrafo. Brilhou! Fascinou em intensidade idêntica às belas imagens do cinematógrafo. Aos olhos de Catarina, esses atributos pareceram ser de um deus moderno, republicano, próprio do novo século a raiar, e em cujos domínios queria reinar como consorte. Tempo, olhos, interesses volveram-se por completo para Theodoro.
Valentin sentiu a perda do espaço para o super-homem. Estava enamorado de Catarina, sim. Encantado com a sua beleza e vivacidade. Atraído pela sua ingênua audácia que considerava fruto de uma inteligência curiosa e de uma disposição enorme para confiar em si mesma. Porém, inquietava-se com o que podia oferecer a essa donzela casadoura, num momento em que a pintura e as ruas de Paris o chamavam tanto para si. Sem saber como encaixá-la na sua vida, deixou a cena para o concorrente.
Catarina embarcou de volta para o Brasil e, meses depois, Theodoro fez o mesmo caminho. A notícia de que os dois estavam noivos não demorou a alcançar Valentin, transmitida pela sua irmã, casada com o irmão do amigo, agora um rival não declarado. No ano seguinte, recebeu o convite para as núpcias. Não compareceu. Passava pela crise que o fez abandonar a carreira de pintor. Investira numa exposição que resultara em fracasso. Impiedosa a crítica sentenciou: -- obra com baixo valor artístico; meros retratos que não situam o contexto dos retratados, nem possuem narrativas claras ou originalidade estilística que enriqueçam a sensibilidade e a apreciação do público.
Migrou assim para as reportagens fotográficas, com o propósito de dar aos críticos as miudezas do contexto exigido, como ainda a narrativa da própria realidade, no que tivesse de trágico ou cômico, belo ou inóspito, e promover o enriquecimento solicitado. Quanto aos nubentes, enviou um presente, com votos de felicidades. Era uma tela pequena, vertical, de uma mulher nua, de pé à beira-mar. O corpo, posado meio de lado e com o tronco ligeiramente inclinado para trás, transmitia leveza e movimento. Os braços eram longos e lânguidos. Um estava erguido, o outro abaixado, e as mãos seguravam a extremidade de uma clara e grande esfera contra o fundo da pintura. Talvez uma lua, que contrastava sua luminosidade de brancos liláceos com o azul negro do céu e do mar, que se tornava menos escuro conforme as águas se aproximavam da praia. A mulher parecia girar suavemente a esfera. Catarina achou a pintura linda. Já Theodoro não achou nada, porém endossou sua opinião para ser cortês.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

3 comentários:

  1. Acho isso meio mágico. Sair histórias e personagens variados da imaginação de um escritor! Tiro meu chapéu. Parabéns Tereza, por essa linda história que compartilha com a gente!

    ResponderExcluir
  2. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada, Edna. Espero que a segunda parte do romance continue a entreter você. Beijos.

      Excluir