NA ORDEM DA ESTRELA
A tarde se desenvolve conforme o programado.
Catarina fala na sede da Ordem da Estrela, um pequeno sobrado emprestado pelo
marido de uma das integrantes e mantido pela contribuição dos outros esposos. O
discurso reproduz trechos de um artigo da edição inaugural da Kosmos e o texto
está sobre a bancada de um púlpito. No quadro-negro fixado na parede atrás, a
programação do evento se exibe escrita em giz:
A Mulher no Brasil Moderno
Y A educação de nossos filhos
e de nossas filhas
Sra. Visconde Augusto de Lima e Penna
Y A vida elegante e o
aperfeiçoamento dos costumes
Sra.
Embaixador Marc Du Blés
Y Uma grande mulher ao lado
de um grande homem
Sra. Secretário
de Governo Theodoro de Alcântara Avelar
Y Debates
Y
Agradecimentos
e Encerramento
Senhoras e senhoritas de fino trato da Capital
formam a audiência. Dois garotos enfastiados representam o gênero masculino,
até que Valentin chega. Senta-se na última cadeira da derradeira fileira. O
efeito de sua presença se expressa. Toques, sinalizações e frissons, discretos
e decorosos, espraiam-se pelo ambiente.
Catarina não gosta nada da imprevisibilidade que se
revela nesse lisonjeiro, porém perigoso comparecimento. Flexiona a cabeça em
resposta ao sorriso cortês que ele lhe dá e pensa no que terá de improvisar
para adequar o conteúdo à sua sensibilidade.
-- As observações cotidianas e o estudo psicológico
do cérebro nos mostram que a inteligência feminina não é de certo igual à do
homem. Há diferenças entre ambas. Mas, comparando-as, não se pode concluir de
tal paralelo a inferioridade da mulher. O espírito dos dois sexos tem a mesma
capacidade, o mesmo poder mental, apenas diverge no tocante aos atributos. A
inteligência feminina é mais analítica, a do homem mais sintética. A masculina
busca a ação, a nossa, a relação. Enquanto os homens se aplicam objetivamente
às generalizações, nós divagamos e aprofundamos nossas conclusões, de modo a
conhecer os detalhes do tema e assim promover novos horizontes para o
equilíbrio harmonioso entre o corpo e a mente.
Sinais de concordância são dados pela plateia.
-- A história nos mostra que, desde Aristóteles a
Augusto Comte, uma plêiade de mulheres distintas pelo coração e espírito têm
sido nutridoras, assistentes, conselheiras e inspiradoras de grandes filósofos
e grandes poetas. Ao lado de Aristóteles, erguia-se a sua formosa e amantíssima
esposa Pythias. Confúcio foi auxiliado pela assistência objetiva de sua esposa
e pelo influxo subjetivo de Ching-Tsaé, a sua eminente mãe, que ele honrou com
um luto de três anos. Vejam bem quão longo foi o seu filial pesar. Pitágoras,
aos sessenta anos, redobrava-se de ardor, pregando a sua admirável doutrina sob
os olhos da bela e jovem Theano, que, de tão brilhante nos números, encantou o
pensador e foi desposada por ele nessa tão avançada idade.
A audiência imagina a influência positiva de todas
essas mulheres na vida de seus esposos e Valentin acha graça de Catarina: ingenuamente adorável.
-- Como esquecer, queridas irmãs, de D’Alember, o
grande matemático, que solucionou a difícil questão da precessão dos equinócios
e realizou cálculos diferenciais extremamente complexos, sob a influência
lúcida e afetiva de Julie de Lespinasse? Ou deixar de frisar que, se não fosse
o coração abnegado da desmedida Clotilde, Augusto Comte certamente não teria
condições de ter levado a termo sua augusta missão. Da mesma forma, é difícil
imaginar o destino do lirismo e do entendimento acerca dos sentimentos amorosos
mais nobres, sem o amor de Dante por Beatriz ou de Petrarca por Laura. Essas
jovens foram de importância fulcral para a humanidade, inspirando cada qual o
seu poeta, que nos legaram sonetos e textos imortais.
Valentin ouve como se analisasse detidamente cada
palavra. As pernas cruzadas amparam os braços também cruzados e a cabeça
balança concordâncias, enquanto a mente vagueia no que constata: como é fácil amar você, Catarina.
-- Poderia citar outras personalidades para ilustrar
a tese que aqui apresento. Mas prefiro apenas contemplá-las. Mulheres que, com
olhos argutos e brandura no trato, têm conseguido, com a constância de uma
admirável inteligência e de um sábio coração, suavizar, quando preciso, o
espírito aguerrido do marido e, pouco a pouco, domar seus impulsos e orientar
suas decisões.
Sorrisos cúmplices abrem-se na plateia, com olhares
também para Valentim.
-- Assim temos provas irrefutáveis de que, ao lado
de um grande homem, há sempre uma grande mulher. Perspectiva que nos torna
auxiliares nos trabalhos de reurbanização de nossa querida cidade.
Algumas faces se entreolham com reserva, enquanto
Valentin entende aonde Catarina quer chegar. Pensa no amigo: É o Theodoro de sempre: envolve sem pudor
quem puder para realizar o que quer.
-- Vivemos tempos de mudanças. E se nossa Capital
comanda as reformas, nós, estamos ao lado de homens com poder para influenciar,
de uma forma ou de outra, essa modernização. No recôndito de nosso lar, na
convivência familiar, podemos contribuir com a nossa inteligência analítica e
com a nossa compaixão pelos desvalidos para as decisões que selarão nosso
destino coletivo. Um destino que pode elevar nossa Capital aos patamares
civilizados de uma Paris, como sonhamos, ou atrasar lastimavelmente seu
progresso, situação esta que penso ser temida por todas nós.
Algumas ouvintes se mantêm em escuta impassível,
outras revelam concordância. Valentin observa as reações e Catarina improvisa
novamente, como fez quando inseriu sentimentos compassivos no seu discurso.
-- Decerto não basta obtermos água em abundância e
esgotos regulares para gozarmos de uma perfeita higiene urbana. É necessário
melhorar também a higiene dos domicílios; fomentar a construção de prédios
modernos; ajardinar praças, alargar ruas e muito mais. Aspirações que somente
poderão ser alcançadas abrindo-se na cidade avenidas, determinando a demolição
da edificação atual onde está mais combalida e, sobretudo, minhas caríssimas e
beneméritas irmãs de Ordem, ajudando incansavelmente essa renovação por meio do
amparo àqueles que serão sacrificados momentaneamente para que o progresso
possa sorrir para todos.
Aplausos são dados mais fortes em umas mãos do que
em outras.
-- Antes de encerrar minha preleção, tenho a honra
de registrar a presença do senhor Valentin Lopes de Santarém, recém-chegado da
Europa, cunhado de meu marido e filho do magistrado José Caetano de Santarém e
de Dona Fidalga Lopes de Santarém, que foi uma de nossas irmãs de Ordem e
conhecida de muitas de nós.
Acenos para Valentin revelam essas muitas de nós à
plateia.
-- Com satisfação informo sobre o sarau que eu e meu
marido realizaremos para celebrar o lançamento da revista Kosmos, no domingo de
Carnaval, em nossa casa. Será uma rica oportunidade para apreciarmos a boa
música, estar com pessoas queridas, trocar impressões e brindar o progresso que
se descortina para nossa capital e país. Em breve, os convites chegarão a
vossas mãos. Muito obrigada pela atenção.
Algumas mulheres se levantam e aplaudem, encantadas
com o convite. Catarina se senta, satisfeita com seu discurso. A sessão
prossegue. Apartes são pedidos a Valentin. É tão encantador em suas respostas,
que a anfitriã releva o comportamento imprevisível. Programação cumprida, os
dois tomam o coche e partem ao encontro de Theodoro no centro da cidade.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para
Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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