sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Capítulo Quatorze

NA ORDEM DA ESTRELA


A tarde se desenvolve conforme o programado. Catarina fala na sede da Ordem da Estrela, um pequeno sobrado emprestado pelo marido de uma das integrantes e mantido pela contribuição dos outros esposos. O discurso reproduz trechos de um artigo da edição inaugural da Kosmos e o texto está sobre a bancada de um púlpito. No quadro-negro fixado na parede atrás, a programação do evento se exibe escrita em giz:
A Mulher no Brasil Moderno
Y  A educação de nossos filhos e de nossas filhas
Sra. Visconde Augusto de Lima e Penna
Y  A vida elegante e o aperfeiçoamento dos costumes
Sra. Embaixador Marc Du Blés
Y  Uma grande mulher ao lado de um grande homem
Sra. Secretário de Governo Theodoro de Alcântara Avelar
Y  Debates
Y   Agradecimentos e Encerramento
Senhoras e senhoritas de fino trato da Capital formam a audiência. Dois garotos enfastiados representam o gênero masculino, até que Valentin chega. Senta-se na última cadeira da derradeira fileira. O efeito de sua presença se expressa. Toques, sinalizações e frissons, discretos e decorosos, espraiam-se pelo ambiente.
Catarina não gosta nada da imprevisibilidade que se revela nesse lisonjeiro, porém perigoso comparecimento. Flexiona a cabeça em resposta ao sorriso cortês que ele lhe dá e pensa no que terá de improvisar para adequar o conteúdo à sua sensibilidade.
-- As observações cotidianas e o estudo psicológico do cérebro nos mostram que a inteligência feminina não é de certo igual à do homem. Há diferenças entre ambas. Mas, comparando-as, não se pode concluir de tal paralelo a inferioridade da mulher. O espírito dos dois sexos tem a mesma capacidade, o mesmo poder mental, apenas diverge no tocante aos atributos. A inteligência feminina é mais analítica, a do homem mais sintética. A masculina busca a ação, a nossa, a relação. Enquanto os homens se aplicam objetivamente às generalizações, nós divagamos e aprofundamos nossas conclusões, de modo a conhecer os detalhes do tema e assim promover novos horizontes para o equilíbrio harmonioso entre o corpo e a mente.
Sinais de concordância são dados pela plateia.
-- A história nos mostra que, desde Aristóteles a Augusto Comte, uma plêiade de mulheres distintas pelo coração e espírito têm sido nutridoras, assistentes, conselheiras e inspiradoras de grandes filósofos e grandes poetas. Ao lado de Aristóteles, erguia-se a sua formosa e amantíssima esposa Pythias. Confúcio foi auxiliado pela assistência objetiva de sua esposa e pelo influxo subjetivo de Ching-Tsaé, a sua eminente mãe, que ele honrou com um luto de três anos. Vejam bem quão longo foi o seu filial pesar. Pitágoras, aos sessenta anos, redobrava-se de ardor, pregando a sua admirável doutrina sob os olhos da bela e jovem Theano, que, de tão brilhante nos números, encantou o pensador e foi desposada por ele nessa tão avançada idade.
A audiência imagina a influência positiva de todas essas mulheres na vida de seus esposos e Valentin acha graça de Catarina: ingenuamente adorável.
-- Como esquecer, queridas irmãs, de D’Alember, o grande matemático, que solucionou a difícil questão da precessão dos equinócios e realizou cálculos diferenciais extremamente complexos, sob a influência lúcida e afetiva de Julie de Lespinasse? Ou deixar de frisar que, se não fosse o coração abnegado da desmedida Clotilde, Augusto Comte certamente não teria condições de ter levado a termo sua augusta missão. Da mesma forma, é difícil imaginar o destino do lirismo e do entendimento acerca dos sentimentos amorosos mais nobres, sem o amor de Dante por Beatriz ou de Petrarca por Laura. Essas jovens foram de importância fulcral para a humanidade, inspirando cada qual o seu poeta, que nos legaram sonetos e textos imortais.
Valentin ouve como se analisasse detidamente cada palavra. As pernas cruzadas amparam os braços também cruzados e a cabeça balança concordâncias, enquanto a mente vagueia no que constata: como é fácil amar você, Catarina.
-- Poderia citar outras personalidades para ilustrar a tese que aqui apresento. Mas prefiro apenas contemplá-las. Mulheres que, com olhos argutos e brandura no trato, têm conseguido, com a constância de uma admirável inteligência e de um sábio coração, suavizar, quando preciso, o espírito aguerrido do marido e, pouco a pouco, domar seus impulsos e orientar suas decisões.
Sorrisos cúmplices abrem-se na plateia, com olhares também para Valentim.
-- Assim temos provas irrefutáveis de que, ao lado de um grande homem, há sempre uma grande mulher. Perspectiva que nos torna auxiliares nos trabalhos de reurbanização de nossa querida cidade.
Algumas faces se entreolham com reserva, enquanto Valentin entende aonde Catarina quer chegar. Pensa no amigo: É o Theodoro de sempre: envolve sem pudor quem puder para realizar o que quer.
-- Vivemos tempos de mudanças. E se nossa Capital comanda as reformas, nós, estamos ao lado de homens com poder para influenciar, de uma forma ou de outra, essa modernização. No recôndito de nosso lar, na convivência familiar, podemos contribuir com a nossa inteligência analítica e com a nossa compaixão pelos desvalidos para as decisões que selarão nosso destino coletivo. Um destino que pode elevar nossa Capital aos patamares civilizados de uma Paris, como sonhamos, ou atrasar lastimavelmente seu progresso, situação esta que penso ser temida por todas nós.
Algumas ouvintes se mantêm em escuta impassível, outras revelam concordância. Valentin observa as reações e Catarina improvisa novamente, como fez quando inseriu sentimentos compassivos no seu discurso.
-- Decerto não basta obtermos água em abundância e esgotos regulares para gozarmos de uma perfeita higiene urbana. É necessário melhorar também a higiene dos domicílios; fomentar a construção de prédios modernos; ajardinar praças, alargar ruas e muito mais. Aspirações que somente poderão ser alcançadas abrindo-se na cidade avenidas, determinando a demolição da edificação atual onde está mais combalida e, sobretudo, minhas caríssimas e beneméritas irmãs de Ordem, ajudando incansavelmente essa renovação por meio do amparo àqueles que serão sacrificados momentaneamente para que o progresso possa sorrir para todos.
Aplausos são dados mais fortes em umas mãos do que em outras.
-- Antes de encerrar minha preleção, tenho a honra de registrar a presença do senhor Valentin Lopes de Santarém, recém-chegado da Europa, cunhado de meu marido e filho do magistrado José Caetano de Santarém e de Dona Fidalga Lopes de Santarém, que foi uma de nossas irmãs de Ordem e conhecida de muitas de nós.
Acenos para Valentin revelam essas muitas de nós à plateia.
-- Com satisfação informo sobre o sarau que eu e meu marido realizaremos para celebrar o lançamento da revista Kosmos, no domingo de Carnaval, em nossa casa. Será uma rica oportunidade para apreciarmos a boa música, estar com pessoas queridas, trocar impressões e brindar o progresso que se descortina para nossa capital e país. Em breve, os convites chegarão a vossas mãos. Muito obrigada pela atenção.
Algumas mulheres se levantam e aplaudem, encantadas com o convite. Catarina se senta, satisfeita com seu discurso. A sessão prossegue. Apartes são pedidos a Valentin. É tão encantador em suas respostas, que a anfitriã releva o comportamento imprevisível. Programação cumprida, os dois tomam o coche e partem ao encontro de Theodoro no centro da cidade.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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