sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Capítulo Quinze

DO INDECIFRÁVEL


-- Não disse nada do que achou da minha apresentação.
-- Você é adorável.
-- E a minha tese também é?
-- Sim, sobre as mulheres. Já quanto a propagandear as demolições, receio que se comprometa e a Ordem com o pior.
-- Então me expressei mal. Tentei mostrar a importância de influenciarmos as decisões de assistência à população pobre removida.
-- Acredita que o Governo está preocupado com os despejados?
-- Só posso responder por Theo e o ajudo no que está ao meu alcance. Sou apenas uma estrela dessa enorme constelação.
Valentin acha graça da imagem que Catarina faz de si mesma.
-- Decerto uma estrela de brilho sem igual.
-- E hoje mais brilhante porque estou muito feliz de você estar aqui.
A resposta instiga o desejo de compreensão.
-- Por que sou motivo de tanto contentamento?
-- Ora, bobinho. Não sabe que me é um querido?
O olhar mareja doçuras faiscantes – e Valentin se recorda de Paris, dos dias em que teve esse olhar só para si, das razões de tê-lo abandonado, das realizações que perseguiu e se revelaram como miragens, sempre adiante e evaporantes. Vira o rosto e, pela janela do coche, avista o mar a ser recuado pelas obras da reurbanização. A imagem evoca o objeto da sua insegurança: o ensaio fotográfico da cidade, a motivação inconfessa para ter aceito o trabalho: rever Catarina, e incita o verbo da sua ansiedade: o desejo de protagonizar uma ação capaz de lhe gerar satisfação e reconhecimento.
-- Alguma vez sentiu o vazio da vida?
Nunca teria sido a resposta de Catarina se não tivesse clareza do seu papel de cuidar do sensível humor de Valentin ou se achasse oportuno revelar o quanto a vida é plena de sentidos que nutrem seu espírito, aquecem sua alma e lhe dão enorme prazer. Tanto que acha injusto diferenciar-se da carência que identifica na pergunta e lhe parece ser a razão do desassossego de Valentin. Responde em outros termos.
-- Busco me concentrar em tudo de bom que possuo. Caso contrário, corro o risco de invocar Levana. Já ouviu falar dela?
-- Não.
-- É uma deusa romana. Mãe de Lágrimas, Suplícios e Trevas.
-- Que filiação.
-- Não é? Quando eu era pequena e reclamava disso e daquilo, sobretudo de ter ido morar na fazenda, mamãe falava: “maldizer a vida é chamar Levana”. Aprendeu sobre essa deusa com vovô. Homem cultíssimo, pena que morreu cedo. Por isso nunca reclame da vida, porque Levana te mostrará tudo o que poderia ser pior.
-- Theodoro é um homem de sorte.
-- Você também, meu querido.
De novo Valentin não sabe se enxerga no olhar de Catarina promessas sensuais ou um carinho incestuoso de tão fraterno.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


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