DO INDECIFRÁVEL
-- Não disse nada do que achou da minha
apresentação.
-- Você é adorável.
-- E a minha tese também é?
-- Sim, sobre as mulheres. Já quanto a propagandear
as demolições, receio que se comprometa e a Ordem com o pior.
-- Então me expressei mal. Tentei mostrar a
importância de influenciarmos as decisões de assistência à população pobre
removida.
-- Acredita que o Governo está preocupado com os
despejados?
-- Só posso responder por Theo e o ajudo no que está
ao meu alcance. Sou apenas uma estrela dessa enorme constelação.
Valentin acha graça da imagem que Catarina faz de si
mesma.
-- Decerto uma estrela de brilho sem igual.
-- E hoje mais brilhante porque estou muito feliz de
você estar aqui.
A resposta instiga o desejo de compreensão.
-- Por que sou motivo de tanto contentamento?
-- Ora, bobinho. Não sabe que me é um querido?
O olhar mareja doçuras faiscantes – e Valentin se
recorda de Paris, dos dias em que teve esse olhar só para si, das razões de
tê-lo abandonado, das realizações que perseguiu e se revelaram como miragens,
sempre adiante e evaporantes. Vira o rosto e, pela janela do coche, avista o
mar a ser recuado pelas obras da reurbanização. A imagem evoca o objeto da sua
insegurança: o ensaio fotográfico da cidade, a motivação inconfessa para ter
aceito o trabalho: rever Catarina, e incita o verbo da sua ansiedade: o desejo
de protagonizar uma ação capaz de lhe gerar satisfação e reconhecimento.
-- Alguma vez sentiu o vazio da vida?
Nunca teria sido a resposta de Catarina se não
tivesse clareza do seu papel de cuidar do sensível humor de Valentin ou se
achasse oportuno revelar o quanto a vida é plena de sentidos que nutrem seu
espírito, aquecem sua alma e lhe dão enorme prazer. Tanto que acha injusto
diferenciar-se da carência que identifica na pergunta e lhe parece ser a razão
do desassossego de Valentin. Responde em outros termos.
-- Busco me concentrar em tudo de bom que possuo.
Caso contrário, corro o risco de invocar Levana. Já ouviu falar dela?
-- Não.
-- É uma deusa romana. Mãe de Lágrimas, Suplícios e
Trevas.
-- Que filiação.
-- Não é? Quando eu era pequena e reclamava disso e
daquilo, sobretudo de ter ido morar na fazenda, mamãe falava: “maldizer a vida
é chamar Levana”. Aprendeu sobre essa deusa com vovô. Homem cultíssimo, pena
que morreu cedo. Por isso nunca reclame da vida, porque Levana te mostrará tudo
o que poderia ser pior.
-- Theodoro é um homem de sorte.
-- Você também, meu querido.
De novo Valentin não sabe se
enxerga no olhar de Catarina promessas sensuais ou um carinho incestuoso de tão
fraterno.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para
Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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