domingo, 11 de janeiro de 2015

Capítulo Três

DO CONDÃO DE BEM-ESTAR


Nesta noite de lua cheia, um navio evolui no mar a menos de um dia de viagem da Capital Federal. Valentin está sentado numa poltrona de uma elegante cabine. Seus cabelos claros revolvem-se em cachos sobre os ombros. O peito se mostra pela fresta da camisa aberta para fora da calça. Os punhos também desabotoados pendem dos braços estendidos sobre os da poltrona e as pernas se dispõem estiradas em pés descalços. Uma garrafa e uma taça com sobra de vinho estão no chão, ao lado da poltrona. O ambiente, iluminado com luz aconchegante, emana uma sensação de harmonia que contrasta com a expressão tensa desse homem de trinta e seis anos.
Nascido em São Sebastião do Rio de Janeiro, veio ao mundo com a sensibilidade aflorada e o olhar ampliado para as belezas e glórias da vida. Menino de tudo, já vagueava no faz de conta de ter feito algo excepcional para o seu tempo. O feito não lhe era claro, porém sua grandeza era nítida e proporcional à distinção das pessoas ilustres que em sua imaginação lhe devotavam estimado reconhecimento.
Revelou cedo o dom de desenhar e iniciou aulas de pintura. Vislumbrou para si um futuro promissor no mundo das belas artes. Mais tarde, apaixonou-se pela filosofia e questionou as iniquidades que impediam a vida de ser generosa com todos. Abraçou as causas humanitárias e defendeu a abolição da escravatura nos últimos anos de formação no Colégio Pedro II, quando então desistiu da pintura pelo bacharelado em Direito na Universidade de Coimbra para onde partiu. Logo já era conhecido pelo ardor de seus pensamentos libertários. Combateu o domínio português além-mar, escreveu e fez charges a respeito para periódicos. Foi orientado pelos professores para adotar o bom-senso no uso das liberalidades dentro e fora da universidade e depois foi severamente repreendido pelo reitor por ferir a sensatez em ambos os espaços. Acalmou-se na boemia e entre poetas. Amou, reformou o mundo em sonhos, formou-se e se mudou para Paris, onde foi se especializar em Leis e Jurisdição.
O fértil ambiente da capital francesa o estimulou a retomar a pintura e a se engajar em movimentos de organização operária. Taxado de anarquista pelo movimento e de utopista pelos colegas advogados, abandonou as leis e as causas sociais, para dedicar-se somente à pintura. Em breve, migrou para a reportagem fotográfica. Desde então, viaja para países distantes, contratado por revistas, museus e sociedades geográficas. Esteve na África, na Índia e na China. O próximo trabalho é fotografar a reurbanização da cidade do Rio de Janeiro, de onde seguirá para a Amazônia. Vem de um descanso em Portugal, país de seus antepassados e para onde os pais se mudaram por época do exílio da família imperial brasileira.
Batidas à porta da cabine soam. A tensão adensa em Valentin. Por um instante, ainda se mantém quieto, então se levanta. Retira dinheiro do bolso da calça e abre parcialmente a porta. Vê um marujo com a mão estendida e a ironia a debruar os lábios. Acena-lhe as notas e ordena:
-- Abre.
-- Aqui?
-- É.
O marujo olha para cada lado do elegante e ermo corredor. Desembrulha o volume que trazia na mão e o ergue em um movimento serpenteado.
-- Magia pura.
Valentin fita grânulos feitos da massa negra do ópio e imagina o reencontro com o prazer que exerce sobre ele constante pressão. Troca o dinheiro pela mercadoria e fecha a porta, indiferente ao que o marujo esboçou lhe dizer. Pega no chão a taça e dirige-se para uma mesa, onde se senta numa cadeira e lança grânulos da droga dentro do recipiente. Pela haste de cristal, faz o ópio girar na sobra da bebida e depois o põe dentro da cabeça do cachimbo, que dividia até então a mesa com um material de desenho e uma máquina fotográfica. O narcótico incendiado à chama do álcool exala um aroma ocre. Fuma em tragos calmos... Entorpece-se, tomado de expectativas e inquietações. 
Está descontente com os resultados do seu trabalho. Consegue vender seus textos sobre terras distantes apenas com cortes e reescritas. Os editores recusam suas análises sobre o comum dos povos. Exigem distinções fortes para evitar dúvidas entre as coletividades atrasadas e as civilizadas. Da mesma forma, rejeitam críticas à exploração humana que as potências europeias realizam nas suas colonizações. Já as fotografias despertam interesse. São usadas para apoiar pesquisas de flora e fauna ou para ilustrar a crença de existir raças superiores e inferiores, com base na cor da pele. Outra possibilidade é deleitar olhares ávidos do exótico. Ressente-se com esse uso ora limitado, ora inadequado do seu trabalho. Desencantado, viaja de volta à cidade do Rio desejoso de achar os rastros de um tempo em que tudo lhe era promissor e, a partir dessas marcas, traçar um novo caminho para a realização de si. Traga novamente o condão de bem-estar.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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