quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Capítulo Cinquenta e Um

AO LONGO DO AMAZONAS


26.5.1904
Embarquei hoje no Lydia com destino a Manaus. O vapor é pequeno e somente o pavimento superior possui cabines; o inferior é um amplo espaço de convivência que se transforma em dormitório à noite quando redes de dormir são abertas. 
Escaldado com a mareação a bordo do Alagoas, suportei investidas de piuns e me mantive durante o dia no convés. A paisagem se repete nas inúmeras voltas do rio, em uma apreciação adequada aos botânicos. Sabem enxergar diferenças nas semelhanças e se encantar continuamente. Fotografei algumas paisagens que penso ser a expressão do que os meus editores querem ver. É uma profusão de folhagens das quais reconheço as palmeiras com seus caules esguios e majestosos leques. Araras voam em pares e as cores de suas penas brilham sob a incidência dos raios do sol. Às vezes um grupo de martim-pescador sobrevoa as águas. Ouvi estampidos de tiros e fui ver o que era. Um passageiro atirava para espantar uma garça branca à espreita de um peixe. Outro tiro foi dado. Assustada, a ave plainou num voo elegante e pousou mais na frente num galho de árvore perto da água. Bonito de ver, mas um esforço adicional à criatura no seu empenho para viver. Bom para o peixe que se salvou. Estamos na máxima da enchente do rio. E, onde avistamos as margens, são de fato várzeas. As praias submersas ressurgirão nas secas quando serão povoadas por mergulhões, guarás vermelho e outras aves, conforme ouvi no convés. 
Câmera fotográfica sempre desperta curiosidade e incita aproximações. Sem disposição para falar, contornei com sucesso as abordagens sobre os meus objetivos de viagem. Um passageiro de meia idade, olhar firme, corpo pequeno, porém rijo e pele curtida de sol, observou essas tentativas e as minhas monossilábicas respostas. Com os olhos na curva do rio, ele me disse: -- quem anda em terra alheia, pisa o chão devagar. Meneei a cabeça em um sinal de deferência e voltei para a cadeira onde estou com as ideias dele ainda a girar as minhas ideias.

27.5.1904
Ainda avançamos entre as ilhas do Pará. A paisagem em curvas se repete com variações apenas na largura do canal. Neste instante, está estreito. Nas margens, cachoeiras de folhagens derramam-se sobre as águas enquanto troncos e caules disputam as alturas. Os cipós se misturam uns aos outros formando um cabo grosso enrodilhado ou pendido. Trepadeiras sobem as árvores e das copas caem em festões coloridos e compridos, ora em forma de espigas, ora como uma trombeta.  A selva sombreia a água, num dia luminoso.
Em pontos esparsos dessas paragens, há humildes casas de madeira fincadas nas várzeas inundadas. Os moradores são pobres e costumam se apresentar na frente de suas moradas com um olhar quase sempre comprido, enquanto crianças nuas nadam como peixes nas águas próximas. Não os fotografei. Receio que suas adversidades alinhavem raciocínios de uma raça inferior – e não o abandono e a solidão que vejo.

28. 05.1904
Esta manhã Lydia ultrapassou a desembocadura do Xingu e mais um pouco, entramos no colossal rio Amazonas. Em alguns trechos, não se veem as margens, em outros, a terra se mostra como a linha do horizonte e, somente quando o vapor se aproxima de uma margem, a selva se revela fechada por árvores gigantescas.

29.5.1904
O ponto alto da travessia de hoje foi o encontro das águas de cor verde-esmeralda do Tapajós com as barrentas do Amazonas. É uma guerra entre titãs. Por um trecho, ambos os rios mantêm sua coloração. Em uma linha divisória sinuosa, ora um invade o espaço do outro, ora recua, sem que os dois alterem a cor de suas águas, até que se misturam, e o Amazonas segue em triunfo. Na foz do rio Tapajós, ergue-se o povoado de Santarém, polo importante de escoamento da goma das seringueiras. É região também dos Munduruku, índios conhecidos no passado como audaciosos guerreiros e com a tradição de mumificar a cabeça dos inimigos como um talismã para obter a força do seu antigo dono.
De tarde passamos por uma procissão de canoas. Enfeitadas com bandeirolas coloridas, seguiam a canoa principal que levava um santo sobre um aparador ornado com flores. Os fiéis cantavam ao som de flautas e tambor. Lygia apitou três vezes e o cortejo respondeu com efusivos acenos de mãos. O encontro nos alegrou. Dispersamo-nos pelo convés com expressões brilhantes e brilhosas – está quente e úmido.

30. 5.1904
Pela manhã, ultrapassamos Óbidos, município ainda nas águas do Pará e de terras associadas às Amazonas. Esta sociedade de lendárias guerreiras cortava o seio direito para melhor puxar a corda do arco. Se com os dois as mulheres já acertam seus alvos, imagina sem o alegado inconveniente. O alvejado morria de vez. Eu pelo menos ando, alquebrado, mas ando.
De Óbidos em diante, o cenário ribeirinho apresenta variações. Nas margens, sobretudo da esquerda, há campos e distantes montanhas – uma encantadora visão para olhos somente embebidos de águas e matas. Em alguns trechos, surgem sítios com plantações e criação de animais, casas de tijolos e as habituais choupanas de pau a pique cobertas por palhas. Um desses sítios me surpreendeu pela grande quantidade de cabeças de gado, além da imponência da casa principal. Uma bela propriedade em plena selva. Quase sempre, nas ribanceiras, há lenha empilhada para ser vendida. Às vezes, um caboclo, como são chamados os nativos dessas regiões, singra ao nosso lado em sua ubá, uma estreita canoa feita de tronco de árvore.
O baralho é um bom passatempo a bordo. Mas tenho evitado os jogos que me dão desejo de beber. Desde a mareação no Alagoas, estou em abstinência. Domo a vontade com a proposta de somar mais um dia abstêmio ao cumulado. Ultimamente meus objetivos se restringem aos interesses que só dependem de mim para a sua realização.
Outro passatempo a bordo são as conversas. Ouço bastante. Eu e o passageiro de olhar firme e corpo pequeno. Fazemos companhia um sentado ao lado do outro e quase sempre quietos. Às vezes abrimos a guarda, como hoje, quando dedicamos nossa atenção a dois jovens militares, recém-formados em engenharia pela Escola Militar da Praia Vermelha. Em Manaus, descerão o rio Purus a caminho do Acre. Lá integrarão a comissão que organiza esse novo território nacional, com a capital fundada às margens dos rios Iaco e Caeté. O feito, disseram, porá fim aos conflitos armados que ocorrem na região entre os seringalistas brasileiros e os da Bolívia e do Peru, numa pacificação garantida pela demarcação das terras do Acre. Vislumbram nessa demarcação a oportunidade de se coletar dados para a realização de melhorias na navegação local e comentaram sobre a construção de uma estrada de ferro que solucionará o problema das cachoeiras do rio Madeira, um empecilho ao escoamento dos produtos extrativos. Outra façanha é a ligação do Acre a Manaus pelas linhas telegráficas. Em resumo: entusiasticamente apresentaram um plano infalível, no qual a lei, telégrafos e transportes impulsionarão a ação civilizadora pelo território do rio Amazonas. 
Tamanha convicção, ou melhor, tanto desejo de progresso evocou o meu, combalido pelos regeneradores da cidade do Rio. Parabéns e boa sorte, disse-lhes. 
-- Precisarão. Essa é uma tarefa difícil, retrucou o meu companheiro de viagem. 
A resposta iniciou um debate entre eles.
-- Com certeza, domar a selva é um esforço extraordinário, porém possível.
-- A Amazônia é tinhosa. Tem uma ordem diferente.
-- A lei e a ciência dão conta.
-- Tirem a prova com o Purus. Terão muito trabalho por lá.
-- Estamos preparados.
-- As águas também. As terras caídas que o digam.
Os jovens se entreolharam, com reservas zombeteiras.
-- Terras caídas de onde?
-- Das margens dos rios. Águas grandes solapam o entorno. Num piscar de olho, ribanceiras desabam e matas são tragadas. Na seca, o leito do rio está cheio de lomba e de tronco amontoado. O homem só passa com a montaria nas costas.
-- É questão de limpar o leito e desafogar a travessia.
-- Esforço sem fim. Logo mais estará tudo cheio de novo.
-- Podemos corrigir as curvas do rio e remover os entulhos.
-- As águas podem chiar. Coisa da natureza: gosta de dar voltas.
-- A engenharia se entende com esse modo de ser.
-- Sei não. Às vezes nem terra firme escapa da inundação. E tem a mata. Num dia o sujeito abre a picada; no outro, a capoeira toma de assalto. E vem mais ramosa, miúda, enrodilhada, difícil de lidar.
-- O senhor trabalha em quê?
-- Sou sentinela da natureza.
-- Tipo um vigia, capataz?
-- O que achar melhor.
Resposta vaga e pareceres céticos afugentaram os jovens. Após uma breve pausa, meu companheiro de viagem falou:
-- Natureza só tem cara de paisagem. Mas tenta botar cabresto na Amazônia. Verá quem será arreado.
-- Conhece bem a região?
-- Sou nascido, criado e retornado para o Solimões quase na boca do Juruá.
-- E de onde retornou?
-- De um seminário em Belém do Pará. Era para ter sido padre.
-- Posso saber por que decidiu ser sentinela da natureza?
-- Necessidade da vida: ora vigiar a mata e as águas, ora defender a terra da ambição alheia.
-- Muitos ataques?
-- Há bichos e forças de todo jeito.
-- É possível descanso e conforto?
-- De olhos bem abertos. Seja cauteloso naquilo que for fazer por aqui. Aqueles que chegam fortes demais costumam tombar ou sair bem fracos da região.
Venho de uma família para quem o esperado de um homem é um posicionamento claro dos seus princípios, sobretudo, em nome do bem. Crença e natureza acolheram-se mutuamente em mim, como a mão a luva, a ponto de eu ter prazer em ser sincero.  Ingênuo ou delirante, desdenhei de conselhos como o dado pelo meu companheiro de viagem. O silêncio é de ouro e também grilhões da crueldade e do atraso. Contudo alcancei o meu limite. Reconheço minha inaptidão em contribuir para uma vida melhor. Não sou talhado para lidar com ardis tramados com cautela e esperteza exemplares. A miséria me constrange, a má-fé me revolta, a injustiça me desarvora, e o verbo costumava disparar da minha boca. Não mais. Assumi minha incompetência e me rendi aos fatos: na competição pela vida, o bem comum é preterido por várias razões. Minha crença em uma humanidade fraterna e digna não me alimenta mais. Em passos de cágado, nosso processo civilizador avança impulsionado pelo acaso de um emaranhado de ações das quais muitas são míopes, medíocres e perversas. O mal também gera conforto, que todos querem, e a prudência cala. Assim o humano se protege. Curvei-me a essa força e sou mais outro a se calar. Como um caramujo forasteiro, estou determinado a me deslocar sobre o chão alheio de boca fechada e cumprir sem demora minhas obrigações contratuais aqui. Acharei depois um modo de viver mais consistente com a minha condição de inadequado da espécie.
Começa o entardecer. A luminosidade aqui se esvai rapidamente.

Lydia margeia as ilhas com rochedos que encobrem a boca do Rio Madeiras. Ao final da manhã, o Amazonas enfrenta outro titã, o rio Negro. Por algum tempo, as águas duelam com as suas cores, e o Amazonas desvia seu caminho, quando então se torna Solimões. O vapor lança a âncora diante do cais de Manaus. No convés, Valentin se encontra com seu companheiro de viagem.
-- Em terra firme outra vez.
-- Nada é tão firme aqui.
-- Certo. Terras caídas.
-- Cândido Batista, ao seu dispor no Solimões, quase na boca com o Juruá.
-- Valentin Lopes de Santarém, em viagem pela Amazônia.
Apertam as mãos e se separam. Valentin desembarca convencido de que nunca duas pessoas se entenderam tão bem no silêncio. Cândido segue viagem.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


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