Alvos Indeclináveis de Alves
Do
exterior, o Brasil é visto como um país vasto, belo e rico em recursos
naturais, porém, mestiço, analfabeto e flagelado por mortais epidemias.
Ancorados nesses fatos, os doutores e publicistas da política mundial se
limitam a lavar sentenças – invariáveis e condenatórias – de não termos
condições de alavancar o progresso e de avançar em civilização. E há os daqui
que as justificam, envergonhados da nossa realidade social e biológica: “o que se pode esperar de um povo feito do conluio
de selvagens inferiores, indolentes grosseiros, de colonizadores oriundos da
gente mais vil da metrópole – calcetas, assassinos, barregões – e de negros
bossais e degenerados?”. Só há um meio de acabar com esse estigma e extinguir
essa agressão. Apercebermo-nos do que somos e, de modo vigoroso, competir com
as grandes potências no quesito da educação.
As nações parasitas das quais temos sido colonos,
amparadas pelos donos de nossas eternas capitanias hereditárias, extraíram do
nosso solo riquezas abundantes: madeiras nobres, açúcar, café, ouro, prata e
diamantes. Pobres e analfabetos, fizemos nossa independência de Portugal sem
que tivesse sido empregada no país coisa alguma que impulsionasse o ciclo
virtuoso da prosperidade: reservas econômicas? Nenhuma. Instrumentos de produção?
Escravos e açoites. Regime de trabalho? A ignorância sistemática. Condições
para o progresso? A degeneração física e moral do parasitismo – sim, porque
nessas condições a sociedade vive à custa de iniquidades e
extorsões: em vez de apurar os sentimentos de moralidade, que apertam os laços
da solidariedade, ela pratica uma cultura intensiva dos sentimentos egoísticos
e perversos.
Da
mesma forma, parasitariamente, pobres e analfabetos, fizemos a República, sem uma
visão de progresso para todos. Mas os parasitas mundiais e locais querem mais.
Para defender a fonte de sua riqueza, promovem estudos que traduzem a
desigualdade das nações como expressão do valor do seu povo. “Há raças
superiores e inferiores”, dizem eles, “visto que, neste momento, há povos mais
cultos, ricos e poderosos do que outros. Esses estão ainda na barbárie em
virtude da inadequação da sua raça para o progresso” – atestam os doutores da
exploração, com base na cor da pele das pessoas. E sentenciam: “as raças
superiores devem governar as inferiores, condenadas que estão a vegetar para
sempre na mediocridade, na abjeção, pois não atingirão jamais as altas esferas
da ciência, da arte, da filosofia e da riqueza”.
Dessa sentença decorre a prática que se avista no Brasil, sobretudo na
Capital Federal: nossas tradições sendo combatidas; nosso povo sendo abandonado
à própria sorte; nossa vida sendo organizada conforme os costumes dos povos
“superiores”. “Proíbam os transbordamentos dos instintos bestiais dos
populachos”. “Vá a Nação para adiante”, dizem os doutos locais, “e a gentalha
que se ajeite como puder”.
É monstruoso que, no Brasil atual, o governo reserve apenas um por cento
do seu orçamento para o ensino, escolas especiais, bibliotecas, museus,
observatórios, etc.! Esta é a real vergonha que assola o país: a negligência
com a vida intelectual do nosso povo, para quem foi negada a educação desde
sempre. Nossa indiscutível ignorância é a causa primeira dos males certos e
fatais que minam nossas condições para o progresso – e não a cor da nossa pele.
Instrução é a real superioridade, a força que um povo pode ter. É também
o objeto da grande reforma que o Brasil deve realizar – e não mascarar com
renovações e embelezamentos urbanos a perversidade com que há séculos é tratada
a maioria dos brasileiros. “Utopia!”, repetirá a sensatez rasteira. Utopia,
sim. Sejamos utopistas, contanto que não esterilizemos nosso ideal, que nos
eduquemos para nos manter defendidos do nosso próprio egoísmo feroz e da ganância alheia.
-- Muito bom. Forte e crítico.
-- Diferente de tudo que já lemos,
não é Theo?
Sem perceber a dissimulação do
casal, Valentin tranquiliza-se: nem uma
palavra a ser retirada ou mudada. Ótimo!
No entanto, Theodoro está decidido
a impedir a publicação. Não é pago para constranger o governo. Nem quer ver o
seu nome associado a ideias contrárias aos interesses da modernização. Quanto a
Catarina, está assombrada com Valentin. Reconhece talento para formular
raciocínios inusitados, talvez até pertinentes, mas nenhum senso de proteção. Como pode denegrir a reputação de nações e
pessoas importantes que podem se voltar contra ele? Disputa a sorte com o inimigo, conclui.
O anfitrião olha para as fotografias
diferentes das contratadas.
-- São somente essas?
-- Esperava mais?
-- Perguntei por perguntar.
-- Sensibilizam, não é Theo?
-- Sim e são originais. Destacam
pessoas e não o ambiente.
Valentin gosta da observação.
-- Ainda pensa em aproveitar o
sarau para expor algumas?
-- Não disse que eram muitas
intenções para um único evento?
-- Se for para ajudar a moradia
popular sair do papel, acho que é válido.
-- Decidido. Vamos expor não só
algumas, mas todas. E marcarei um almoço com Bilac e Munhoz. O material merece
ser entregue em mãos e em grande estilo.
Não dessa vez, pensa Valentin, que antecipou a
entrega com medo de uma possível censura do anfitrião.
-- Talvez em outra ocasião, porque já deixei o
material na redação.
-- O que acharam?
-- Não estavam lá, mas o atendente
ficou de entregar o texto.
-- Com certeza, entrarão logo em
contato.
-- Espero.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
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