domingo, 18 de janeiro de 2015

Capítulo Vinte e Seis

Alvos Indeclináveis de Alves


Do exterior, o Brasil é visto como um país vasto, belo e rico em recursos naturais, porém, mestiço, analfabeto e flagelado por mortais epidemias. Ancorados nesses fatos, os doutores e publicistas da política mundial se limitam a lavar sentenças – invariáveis e condenatórias – de não termos condições de alavancar o progresso e de avançar em civilização. E há os daqui que as justificam, envergonhados da nossa realidade social e biológica: “o que se pode esperar de um povo feito do conluio de selvagens inferiores, indolentes grosseiros, de colonizadores oriundos da gente mais vil da metrópole – calcetas, assassinos, barregões – e de negros bossais e degenerados?”.  Só há um meio de acabar com esse estigma e extinguir essa agressão. Apercebermo-nos do que somos e, de modo vigoroso, competir com as grandes potências no quesito da educação.
 As nações parasitas das quais temos sido colonos, amparadas pelos donos de nossas eternas capitanias hereditárias, extraíram do nosso solo riquezas abundantes: madeiras nobres, açúcar, café, ouro, prata e diamantes. Pobres e analfabetos, fizemos nossa independência de Portugal sem que tivesse sido empregada no país coisa alguma que impulsionasse o ciclo virtuoso da prosperidade: reservas econômicas? Nenhuma. Instrumentos de produção? Escravos e açoites. Regime de trabalho? A ignorância sistemática. Condições para o progresso? A degeneração física e moral do parasitismo – sim, porque nessas condições a sociedade vive à custa de iniquidades e extorsões: em vez de apurar os sentimentos de moralidade, que apertam os laços da solidariedade, ela pratica uma cultura intensiva dos sentimentos egoísticos e perversos.
Da mesma forma, parasitariamente, pobres e analfabetos, fizemos a República, sem uma visão de progresso para todos. Mas os parasitas mundiais e locais querem mais. Para defender a fonte de sua riqueza, promovem estudos que traduzem a desigualdade das nações como expressão do valor do seu povo. “Há raças superiores e inferiores”, dizem eles, “visto que, neste momento, há povos mais cultos, ricos e poderosos do que outros. Esses estão ainda na barbárie em virtude da inadequação da sua raça para o progresso” – atestam os doutores da exploração, com base na cor da pele das pessoas. E sentenciam: “as raças superiores devem governar as inferiores, condenadas que estão a vegetar para sempre na mediocridade, na abjeção, pois não atingirão jamais as altas esferas da ciência, da arte, da filosofia e da riqueza”.
Dessa sentença decorre a prática que se avista no Brasil, sobretudo na Capital Federal: nossas tradições sendo combatidas; nosso povo sendo abandonado à própria sorte; nossa vida sendo organizada conforme os costumes dos povos “superiores”. “Proíbam os transbordamentos dos instintos bestiais dos populachos”. “Vá a Nação para adiante”, dizem os doutos locais, “e a gentalha que se ajeite como puder”.
É monstruoso que, no Brasil atual, o governo reserve apenas um por cento do seu orçamento para o ensino, escolas especiais, bibliotecas, museus, observatórios, etc.! Esta é a real vergonha que assola o país: a negligência com a vida intelectual do nosso povo, para quem foi negada a educação desde sempre. Nossa indiscutível ignorância é a causa primeira dos males certos e fatais que minam nossas condições para o progresso – e não a cor da nossa pele.
Instrução é a real superioridade, a força que um povo pode ter. É também o objeto da grande reforma que o Brasil deve realizar – e não mascarar com renovações e embelezamentos urbanos a perversidade com que há séculos é tratada a maioria dos brasileiros. “Utopia!”, repetirá a sensatez rasteira. Utopia, sim. Sejamos utopistas, contanto que não esterilizemos nosso ideal, que nos eduquemos para nos manter defendidos do nosso próprio egoísmo feroz e da ganância alheia.
-- Muito bom. Forte e crítico.
-- Diferente de tudo que já lemos, não é Theo?
Sem perceber a dissimulação do casal, Valentin tranquiliza-se: nem uma palavra a ser retirada ou mudada. Ótimo!
No entanto, Theodoro está decidido a impedir a publicação. Não é pago para constranger o governo. Nem quer ver o seu nome associado a ideias contrárias aos interesses da modernização. Quanto a Catarina, está assombrada com Valentin. Reconhece talento para formular raciocínios inusitados, talvez até pertinentes, mas nenhum senso de proteção. Como pode denegrir a reputação de nações e pessoas importantes que podem se voltar contra ele? Disputa a sorte com o inimigo, conclui.
O anfitrião olha para as fotografias diferentes das contratadas.
-- São somente essas?
-- Esperava mais?
-- Perguntei por perguntar.
-- Sensibilizam, não é Theo?
-- Sim e são originais. Destacam pessoas e não o ambiente.
Valentin gosta da observação.
-- Ainda pensa em aproveitar o sarau para expor algumas?
-- Não disse que eram muitas intenções para um único evento?
-- Se for para ajudar a moradia popular sair do papel, acho que é válido.
-- Decidido. Vamos expor não só algumas, mas todas. E marcarei um almoço com Bilac e Munhoz. O material merece ser entregue em mãos e em grande estilo.
Não dessa vez, pensa Valentin, que antecipou a entrega com medo de uma possível censura do anfitrião.
 -- Talvez em outra ocasião, porque já deixei o material na redação.
-- O que acharam?
-- Não estavam lá, mas o atendente ficou de entregar o texto.
-- Com certeza, entrarão logo em contato.
-- Espero.

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