EM MANAUS
16.6.1904
Banhada pelo rio Negro, Manaus é ondulada por
pequenas elevações. O centro foi reurbanizado recentemente. Possui praças
ajardinadas, passeios largos, sólidas construções e majestosos palacetes. O
luxo convive com a selva próxima e abastados velejam nas águas do rio. A
população está na casa de 50 mil habitantes e os traços indígenas são facilmente
identificados. Diversas
linhas de navegação ligam a cidade aos Estados Unidos e à Europa. Transportam
regularmente cargas e pessoas envolvidas com o comércio dos produtos locais ou
dos seus países. São alemãs as duas principais empresas que comercializam a
goma da seringa, chamada de “ouro negro” e responsável em grande parte pelas
fortunas existentes em Manaus.
A atmosfera é úmida e quente. Após as
pancadas de chuva, o vapor eleva-se às alturas. A noite traz um pouco de alívio
para o ar abafado do dia. Vivo ensopado de suor. As águas são um sedutor
convite para um mergulho totalmente nu, como alguns meninos fazem por aqui.
Contenho esse meu desejo.
Logo que cheguei aqui, procurei na repartição
o Diretor Geral dos Índios, mas o encontrei somente na sua residência. “É
melhor para trabalhar”, disse-me esta espécie humana hábil em sobreviver no seu
meio, com o soldo mensal pago pelo Estado e ocupado com o que lhe apetece a
alma: orquídeas. Sobre os índios, pouco falou. Disse que posso encontrar os
assimilados pelas ruas ou no porto de Manaus. Já os selvagens só nos rincões
das matas ou nas cabeceiras dos rios: “os seringueiros espantam as pobres
almas. E elas também preferem a liberdade do homem à do cidadão”, observou.
Depois de tão rasa explicação, andei pela
cidade. Em frente ao Palácio do Governo, descobri um estúdio fotográfico. Fui
atendido pelo dono, George Hübner, alemão radicado em Manaus. Já participou de
diversas expedições pela Amazônia como fotógrafo. Para minha surpresa, é amigo
de Grünberg e do seu assistente, Heinrich Schmidt, outro integrante da colônia
alemã da cidade. Deu-me notícias dos dois que estão no rio Aiary. Ao contrário
do Diretor Geral, sugeriu algumas rotas para minha expedição ao longo do rio
Negro. Decidi ir ao encontro do etnólogo.
Ao sair do estúdio, fui comprar passagem para
seguir viagem e descobri que vapor para o rio Negro só daqui a duas
semanas. A baixa atividade econômica na
região reduz as ofertas das linhas de navegação para lá. Sem ânimo para me
aventurar sozinho, fico alguns dias mais em Manaus.
De noite passeei pela Avenida Eduardo
Ribeiro. Bela e larga, acolhe cavalheiros de todas as idades reunidos ao redor
de mesas dispostas na calçada. Bebem, discutem política, fecham negócios,
divertem-se com jogos diversos, além de se entreterem com a visão das elegantes
damas de fino trato e de trato fino que passeiam por ali.
Conversei com um latifundiário. Conhece
Cândido Batista. Chamou-o de filho da terra e defensor intrépido do seu
seringal. Junto com ele, já botou pra correr bolivianos e peruanos que se
aventuraram na região para explorar o caucho. Espera que as negociações do
governo com a Bolívia e o Peru ponham fim nessas invasões. Caso contrário, mais
sangue correrá nas matas.
Para o meu interlocutor os nativos são como
“galo de campo, por mais milho que se dê a eles, preferem as dificuldades da
capoeira aos nossos costumes”. Também são temperamentais. Basta o patrão ralhar
para fazer o serviço certo ou que desconfie de um dito ou de um lugar, para o
nativo desaparecer. “Pra segurar o galo, só com vigia e pagamento depois da
tarefa feita – e olhe lá. São ardilosos. Gostam do ócio”.
O sistema de endividamento impera na produção
extrativa da Amazônia. O trabalhador indígena e também os de fora, geralmente
do nordeste do país, compram a crédito mantimentos e instrumentos no barracão
do dono das terras para quem trabalham. Na época do acerto, o valor da dívida é
sempre superior ao montante recebido pela jornada do trabalho. O resto a pagar
de um mês soma-se ao do outro mês e assim sucessivamente as contas nunca são
quitadas. É caro ser pobre.
O latifundiário não acha o sistema lucrativo.
Alega que, na ponta do lápis, somadas perdas e gastos, até para capturar
devedor fujão, as despesas do barracão ficam acima do valor das receitas. Mas
não consegue enxergar outro sistema de trabalho. Com ouvido de mercador,
relaciono-me em terras alheias.
Mas nem tudo tem sido introspecção
aqui, em Manaus, com a sua vida noturna intensa. Há sarau às
quintas-feiras, na Praça da República, às sextas, nos jardins do Palácio do
Governo, e aos sábados, em frente à igreja da Matriz. Para os apreciadores de
operetas ou comédias o Teatro do Amazonas, entre outros, oferece repertório
variado e regular. Há também o Teatro Varieté, onde o espetáculo não para
nunca. De dia ou de noite, cantoras e dançarinas francesas iluminam o palco e
entretêm os cavalheiros.
Outra opção são os salões de dança. Estive no
El Dorado, onde se pode bailar com belas manauaras. Peles acobreadas e olhos fogosos
reluzem, em corpos com molejos indeléveis, quer na pista de dança ou na rede.
Reanimam sujeitos combalidos, dão ímpeto à letargia e abrandam dores. Para
completar o efeito desse bálsamo, tomei banho em um igarapé de águas frias e
compreendi expressões usadas pelos naturalistas para descrever Manaus.
Finalmente senti o delicioso clima mencionado por Wallace ou a gloriosa
temperatura registrada por Bates e mirei o céu de opalas descrito por Mornay.
Lembrei-me com saudades de uma estrela do Rio de Janeiro. Será que pensa em
mim? Como tem feito para seguir com a sua vida?
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
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