terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Capítulo Quarenta e Oito

EM BELÉM


Belém do Pará, 25.05.1904.
Escrevo em uma pequena casa amarela, para onde me mudei há quase dois meses. Atraiu-me à primeira vista e me fez desejá-la quando entrei na sala e vi o bucólico emoldurado pelas janelas azuis. Schaeffer intermediou o contato com o proprietário do imóvel, que se dispôs a alugá-lo para mim.
Num arranjo de gente hospitaleira, a casa erguida em uma rocinha, como são chamados os sítios na região, foi mobiliada com o essencial. Preferi assim. Quis conhecer o mínimo que preciso para sobreviver. Comprei rede de dormir e outra só para balançar. E balancei bastante na companhia de uma preguiça dependurada lá fora no caule de uma árvore. Afeiçoei-me ao seu olhar infantil e o seu gemido tristonho dialogou muitas vezes com o meu. Para alegrar essa interlocução, havia o canto dos passarinhos. Meu espírito agradeceu tão suave prazer.
Li também bastante. Schaeffer me emprestou livros escritos por naturalistas que percorreram o rio Negro e o Amazonas entre os anos de 1781 a 1852. A descrição do cenário humano me interessou mais que a do cenário natural, apesar de ter chamado a minha atenção a visão acerca dos efeitos da floresta sobre o peregrino, que se sente encantado com a exuberância e, ao mesmo tempo, inquieto com a solidão da selva. A descrição do brasileiro como um povo cordial, apreciador da música e de festas está sempre presente nos relatos. E há apreensões comuns nem sempre boas com relação à falta de capricho com o cultivo das plantações.
Um dos viajantes narrou sobre a nação indígena Manao. Ferrenhos combatentes da ocupação territorial pelos portugueses, essa nação mantinha relações comerciais com os espanhóis e soldados brasileiros desertores, para quem capturavam índios em troca de armas e outros produtos de interesse. Seu líder era Ajuricaba. Destemido, dominou o rio Negro, com a bandeira dos holandeses arvorada nas canoas da sua flotilha. Certa vez atacou uma aldeia e, no embate, matou o paxé, um afeiçoado da oficialidade do Grão-Pará. Houve intensa represália oficial e ele foi preso. Durante a travessia para Belém, jogou-se nas águas, acorrentado, numa tentativa de fuga.
Sua história quebra as lentes complacentes que infantilizam os silvícolas e as também equivocadas com relação à evolução do homo sapiens. Revela um perfil humano similar ao dos piratas ou corsários dos mares, com a diferença de que Ajuricaba era o governante do seu próprio corso e o defendeu ao longo dos rios e nas matas. Assaltou tribos com o intuito de comercializar a vida humana, em vez de uni-las para juntos lutarem contra os colonizadores. Não, não posso ser tão taxativo. Vai que tentou e, malsucedido, concretizou a máxima “ou está comigo ou contra mim”.
Conversei com Schaeffer sobre a escravização dos índios pelos próprios nativos e depois a realizada pelos brancos. Não soube me dizer nada além do predomínio da lei natural sobre a artificial. Criada pelo Marques de Pombal, essa lei acenava aos índios brasileiros direitos iguais aos demais vassalos de Portugal. A barbárie dos brancos predominou ora em luta para capturar escravos, ora para vingar ataques. A escravidão perdura em novas formas de cativeiro por esses sertões afora. 
Fiz da devolução de cada livro lido uma oportunidade de visitar Schaeffer e de apresentar-lhe e a sua família minhas estimas e reconhecimento pelo fraterno apoio. Voltei a pintar aqui e os presenteei com uma marinha. Gostam de embarcações.
Estive outras vezes também com Dr. Matias. Providenciou quininos e piretros para minha viagem e acompanhou minha recuperação física. Dei-lhe uma tela do Forte do Presépio, que fica à beira do Guamã, um rio de Belém. Ele aprecia a vista de lá. Sensibilizou-se com a lembrança e me encorajou abraçar a pintura de vez.
Ao longo dessa minha temporada, fui cuidado por Dona Maninha, mulher forte no corpo, doce na alma e desinibida no espírito. Filha de português e de índia, ela viveu com freiras até se casar. Achou-me magro: -- vou cevar o senhor para aguentar a fadiga puxada da viagem acima, disse-me logo que começou a trabalhar aqui. E me cevou. Engordei alguns quilos. Mais alguns dias de convivência já falava de rezas que desembaraçavam tristezas. Pedi que rezasse por mim. Acendeu velas e me benzeu. Deu para me aconselhar também: -- coração solto não descansa porque não tem pouso. Casa com moça de bem que o alívio vem. Talvez ela tenha razão, mas os pensamentos continuam na estrela de grandeza maior que daqui não consigo avistar.
Para Dona Maninha, pintei Nossa Senhora de Nazaré. Apreciou a tela, porém sentiu falta da cobra-grande que diz ter sido esmagada pela santa com a força da sua fé. Prontifiquei-me a corrigir o erro. Respondeu-me que não carecia. Pairava a dúvida de que a cobra renascera avariada, fugira para dentro da terra de Belém e lá desmaiou. Mas, se acordar, como aconteceu certa vez, a cidade tremerá e as águas grandes engolirão o povo. Os fiéis rezam sempre em outubro para a Santa, numa procissão que percorre toda a cidade a fim de evitar esse intento e outros mais. Embora absolvido do meu erro, decidi remediá-lo. Pintei o que bem conhecia: Dona Maninha farta em um vestido branco, sentada com os braços arredondados sobre o colo e o cabelo negro lustroso escorrido de lado em trança grossa, pontilhada com flores coloridas. Esfumacei todo o espaço ao redor com tons de verde. Dona Maninha deslumbrou, acanhou-se e comentou: -- poliu demais o atual. Mas no passado fui formosa assim. Feliz, seguiu para casa levando a eternidade de si.
Conheci ervas no mercado, ouvi lendas e casos, fotografei paisagens, pessoas e folguedos e, a despeito dos perrengues da alma, das saudades sobre as quais nem ouso falar e da preguiça em viajar, é hora de partir, de deixar a proteção dessa pequena casa amarela e das amizades feitas em Santa Maria de Belém do Grão-Pará.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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