O TORNEIO VALOIR
Dissimulações à
mesa de pôquer. Naipes se revelam nas mãos dos jogadores no estrito do
necessário. O exibido em ouros parece auspicioso para Theodoro. Por força das
regras da disputa, começou o jogo com o mesmo número de fichas dos demais
jogadores e ainda não se valeu do direito de adquirir outras, desde que em valor
igual ao inicial. Outra regra da disputa. Só se abandona a mesa com a perda
integral do cacife ou com a desistência do montante ainda possuído a favor da
banca. Esse tudo ou nada ocorre algumas horas depois do término do sarau no
solar e em recinto fechado ao público. É fiscalizado por um funcionário, encarregado
também de providenciar novas fichas aos interessados. Bebidas e iguarias são
servidas por discretos garçons em librés.
De idade entre
trinta e sessenta anos, os jogadores mantêm relações entre si ou possuem
referências um do outro. Poucos são de fora. Os da cidade foram menos radicais
que Theodoro na justificativa para se ausentar do lar. Alegaram compromisso
inesperado, sem hora para voltar, e não a necessidade de ir para Petrópolis por
razões do governo. Atraídos pelo mesmo objetivo, todos disputam nas cartas a
volúpia de Ninon de Valoir, a proprietária do espaço, a Casa Rosada.
Criado para
celebrar a chegada do século vinte, o certame teve outro propósito. Na época,
Ninon tinha quarenta e quatro anos, e a glória de seduzir para edificar-se não a
mobilizava mais. Dissipara-se no passado, quando ainda firmava sua reputação de
cortesã que ia para cama somente com quem queria, após excitante corte e
temporadas financiadas pelo amante de então.
A sensação
despertada por essas conquistas era tão intensa, que suplantava eventuais
decepções no leito. Acontecia, às vezes, do prazer não se consumar a altura do
imaginado durante o excitante flerte. Bem que Ninon se esforçava nessas ocasiões de enfadonhas constações. Tentava sutilmente
ensinar requintes sexuais ao parceiro, do tipo ter uma boca deliciosa, mãos desbravadoras e um falo
prodigioso. Mas o resultado era pífio, lastimável. Mesmo assim, com ou sem
apoteoses sexuais, nesses tempos idos, o que lhe importava era o seu poder para
atrair homens influentes ou singulares e cultivar a amizade, após constatar a
decepção sexual ou o arrefecimento do desejo.
Porém, há muito
se edificara aos próprios olhos e a glória de seduzir transformara-se na
satisfação de bem zelar pela sua reputação e segurança financeira. Tornou-se preguiçosa
nos assuntos da volúpia sexual e passou a cozinhar em fogo alto ou brando a
esperança de antigos amantes em retornar ao seu leito ou a expectativas de
candidatos em debutar na sua alcova. Mas percebeu insatisfações e se pôs
a pensar em como resolver a questão sem prejudicar a receita da Casa
Rosada.
De repente a lembrança das histórias dos torneios medievais lhe veio. Realizados nos
castelos, esses torneios atraiam cavalheiros dispostos a lutar para obter o
título de vassalo de uma dama. Certa de que os contemporâneos não diferenciavam
sobremaneira dos congêneres daqueles séculos, teve a ideia de criar O Torneio Valoir, no qual o prêmio era o
acesso a sua cama. Já as armas seriam o pôquer. Considerou que o certame suscitaria
em seus pretendentes emoção muito maior do que aquela que sentiam ante a
perspectiva de ser o escolhido com base em critérios subjetivos. Além disso,
a competição às claras permitia ganhos para todos. Conferia prestígio adicional
ao vencedor, que teria reconhecida sua maestria no pôquer, quiçá com um cacife
menor, ao passo que os perdedores seriam brindados com a visibilidade do seu
arrojo e do tamanho do seu cacife. Com tantos estímulos, nenhum dos candidatos
se importaria em contribuir com o dinheiro do pôquer para as receitas da Casa
Rosada. Afinal, como homens de negócio conheciam bem o valor das coisas em
todas as searas.
Apostou na sua
ideia, lançou o Torneio e foi bem-sucedida. Tanto que houve o pleito de mais de
um por ano. Ninon ignorou os pedidos, e o certame continuou anual, divulgado
com a devida antecedência, por meio de convites expedidos a um seleto grupo de
cavalheiros. A novidade se espalhou e estimulou a aprendizagem do pôquer, além
de entendimentos. Entendeu-se que a lista revelava quem era quem nos assuntos
varonis e econômicos do país. Não teve quem não quisesse fazer parte desse exclusivo
grupo. Resultado: o fluxo de cavalheiros no bordel aumentou. A renda da Casa
Rosada cresceu e se elevou o cacife para sentar-se à mesa da concorrida
disputa.
Como nas edições
anteriores, o Valoir 1904 expediu
apenas onze convites. O aceite foi total e dois cavalheiros de fora da cidade trouxeram
filhos e sobrinhos para terem a iniciação sexual na Casa Rosada e o acesso aos refinamentos
da civilização com a mestra francesa. A instrução ocorrerá ao longo da tarde do
dia seguinte, quando os jovens aprenderão como se comportar nas diversos
setores da vida. No momento, estão no salão aberto ao público. Ali, mascaradas
fogosas os entretêm, outras fazem a festa de varões e a alegria geral se
expande a cargo das formosas que encenam Os Deleites da Colombina. Afinal é Carnaval
na Capital Federal.
Enquanto tantas fruições
reinam no salão e a tensão à mesa do pôquer, Ninon aguarda
o vencedor, no seu aposento, tomada pelo frisson. Não pensa em preferências,
nem em glórias diferentes daquelas que devem palpitar no coração de uma dama
que se dá a prêmio para celebrar o triunfo de um valoroso certame. A noite é de
entrega. De ode ao prazer e à vitória.
Uma hora depois, a
palpitação de Ninon acelera mais, quando o funcionário lhe entrega a caixa de
marfim com o dinheiro dos perdedores. Aprecia o montante, sem perguntar quem
venceu o jogo. Logo mais, não só saboreia a surpresa de ver o vencedor diante
dela, como se pergunta que raio de fortuito conspirou contra jogadores mais
aptos à vitória e a favor desse querido protetor de todas as horas. Ávida por ouvir
os detalhes da sua vitória, dá o braço ao juiz Abreu Vaz e os dois caminham para
a sala ao lado, onde uma fausta ceia os espera.
Theodoro, por sua
vez, está possesso no aposento que mantém na Casa Rosada. Qualifica Abreu Vaz
como um pangaré que jogou o tempo todo numa posição defensiva e com uma ignota
sorte levou a melhor. Não é justo. Tudo desfeito de um momento para outro.
Quanto mais pensa no instante em que o jogo virou, nas sucessivas esperanças
que teve de reaver a perda nas próximas cartas, quanto mais pensa que esteve
prestes a ganhar e quanto esta vitória lhe era cara, mais a frustração oprime e
outros desconfortos surgem. Exerce controle e analisa a conjuntura. O
magistrado partirá e nenhum plano será mudado. Permanecerá na Casa até
terça-feira, para dar tempo da caça cair na armadilha. Num impulso, deixa o
aposento em direção ao salão principal, onde se reúne aos demais perdedores,
com um bom humor que nem o mais perspicaz observador é capaz de reconhecer os
sinais da derrota que amarga.
Copyright © 2013
by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright
de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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