sexta-feira, 1 de maio de 2015

Capítulo Quarenta e Nove

O TORNEIO VALOIR


Dissimulações à mesa de pôquer. Naipes se revelam nas mãos dos jogadores no estrito do necessário. O exibido em ouros parece auspicioso para Theodoro. Por força das regras da disputa, começou o jogo com o mesmo número de fichas dos demais jogadores e ainda não se valeu do direito de adquirir outras, desde que em valor igual ao inicial. Outra regra da disputa. Só se abandona a mesa com a perda integral do cacife ou com a desistência do montante ainda possuído a favor da banca. Esse tudo ou nada ocorre algumas horas depois do término do sarau no solar e em recinto fechado ao público. É fiscalizado por um funcionário, encarregado também de providenciar novas fichas aos interessados. Bebidas e iguarias são servidas por discretos garçons em librés. 
De idade entre trinta e sessenta anos, os jogadores mantêm relações entre si ou possuem referências um do outro. Poucos são de fora. Os da cidade foram menos radicais que Theodoro na justificativa para se ausentar do lar. Alegaram compromisso inesperado, sem hora para voltar, e não a necessidade de ir para Petrópolis por razões do governo. Atraídos pelo mesmo objetivo, todos disputam nas cartas a volúpia de Ninon de Valoir, a proprietária do espaço, a Casa Rosada.
Criado para celebrar a chegada do século vinte, o certame teve outro propósito. Na época, Ninon tinha quarenta e quatro anos, e a glória de seduzir para edificar-se não a mobilizava mais. Dissipara-se no passado, quando ainda firmava sua reputação de cortesã que ia para cama somente com quem queria, após excitante corte e temporadas financiadas pelo amante de então.
A sensação despertada por essas conquistas era tão intensa, que suplantava eventuais decepções no leito. Acontecia, às vezes, do prazer não se consumar a altura do imaginado durante o excitante flerte. Bem que Ninon se esforçava nessas ocasiões de enfadonhas constações. Tentava sutilmente ensinar requintes sexuais ao parceiro, do tipo ter uma boca deliciosa, mãos desbravadoras e um falo prodigioso. Mas o resultado era pífio, lastimável. Mesmo assim, com ou sem apoteoses sexuais, nesses tempos idos, o que lhe importava era o seu poder para atrair homens influentes ou singulares e cultivar a amizade, após constatar a decepção sexual ou o arrefecimento do desejo.
Porém, há muito se edificara aos próprios olhos e a glória de seduzir transformara-se na satisfação de bem zelar pela sua reputação e segurança financeira. Tornou-se preguiçosa nos assuntos da volúpia sexual e passou a cozinhar em fogo alto ou brando a esperança de antigos amantes em retornar ao seu leito ou a expectativas de candidatos em debutar na sua alcova. Mas percebeu insatisfações e se pôs a pensar em como resolver a questão sem prejudicar a receita da Casa Rosada.
De repente a lembrança das histórias dos torneios medievais lhe veio. Realizados nos castelos, esses torneios atraiam cavalheiros dispostos a lutar para obter o título de vassalo de uma dama. Certa de que os contemporâneos não diferenciavam sobremaneira dos congêneres daqueles séculos, teve a ideia de criar O Torneio Valoir, no qual o prêmio era o acesso a sua cama. Já as armas seriam o pôquer. Considerou que o certame suscitaria em seus pretendentes emoção muito maior do que aquela que sentiam ante a perspectiva de ser o escolhido com base em critérios subjetivos. Além disso, a competição às claras permitia ganhos para todos. Conferia prestígio adicional ao vencedor, que teria reconhecida sua maestria no pôquer, quiçá com um cacife menor, ao passo que os perdedores seriam brindados com a visibilidade do seu arrojo e do tamanho do seu cacife. Com tantos estímulos, nenhum dos candidatos se importaria em contribuir com o dinheiro do pôquer para as receitas da Casa Rosada. Afinal, como homens de negócio conheciam bem o valor das coisas em todas as searas.
Apostou na sua ideia, lançou o Torneio e foi bem-sucedida. Tanto que houve o pleito de mais de um por ano. Ninon ignorou os pedidos, e o certame continuou anual, divulgado com a devida antecedência, por meio de convites expedidos a um seleto grupo de cavalheiros. A novidade se espalhou e estimulou a aprendizagem do pôquer, além de entendimentos. Entendeu-se que a lista revelava quem era quem nos assuntos varonis e econômicos do país. Não teve quem não quisesse fazer parte desse exclusivo grupo. Resultado: o fluxo de cavalheiros no bordel aumentou. A renda da Casa Rosada cresceu e se elevou o cacife para sentar-se à mesa da concorrida disputa.
Como nas edições anteriores, o Valoir 1904 expediu apenas onze convites. O aceite foi total e dois cavalheiros de fora da cidade trouxeram filhos e sobrinhos para terem a iniciação sexual na Casa Rosada e o acesso aos refinamentos da civilização com a mestra francesa. A instrução ocorrerá ao longo da tarde do dia seguinte, quando os jovens aprenderão como se comportar nas diversos setores da vida. No momento, estão no salão aberto ao público. Ali, mascaradas fogosas os entretêm, outras fazem a festa de varões e a alegria geral se expande a cargo das formosas que encenam Os Deleites da Colombina. Afinal é Carnaval na Capital Federal.  
Enquanto tantas fruições reinam no salão e a tensão à mesa do pôquer, Ninon aguarda o vencedor, no seu aposento, tomada pelo frisson. Não pensa em preferências, nem em glórias diferentes daquelas que devem palpitar no coração de uma dama que se dá a prêmio para celebrar o triunfo de um valoroso certame. A noite é de entrega. De ode ao prazer e à vitória.
Uma hora depois, a palpitação de Ninon acelera mais, quando o funcionário lhe entrega a caixa de marfim com o dinheiro dos perdedores. Aprecia o montante, sem perguntar quem venceu o jogo. Logo mais, não só saboreia a surpresa de ver o vencedor diante dela, como se pergunta que raio de fortuito conspirou contra jogadores mais aptos à vitória e a favor desse querido protetor de todas as horas. Ávida por ouvir os detalhes da sua vitória, dá o braço ao juiz Abreu Vaz e os dois caminham para a sala ao lado, onde uma fausta ceia os espera.
Theodoro, por sua vez, está possesso no aposento que mantém na Casa Rosada. Qualifica Abreu Vaz como um pangaré que jogou o tempo todo numa posição defensiva e com uma ignota sorte levou a melhor. Não é justo. Tudo desfeito de um momento para outro. Quanto mais pensa no instante em que o jogo virou, nas sucessivas esperanças que teve de reaver a perda nas próximas cartas, quanto mais pensa que esteve prestes a ganhar e quanto esta vitória lhe era cara, mais a frustração oprime e outros desconfortos surgem. Exerce controle e analisa a conjuntura. O magistrado partirá e nenhum plano será mudado. Permanecerá na Casa até terça-feira, para dar tempo da caça cair na armadilha. Num impulso, deixa o aposento em direção ao salão principal, onde se reúne aos demais perdedores, com um bom humor que nem o mais perspicaz observador é capaz de reconhecer os sinais da derrota que amarga. 

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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