DE AMBIÇÃO ASSUMIDA
As portas dos camarotes do Theatro Lyrico se
abrem e Herculano sai, em companhia de Páscoa. Avista Agostinho e Morais com
Varela, que não havia sido localizado até o primeiro intervalo. A expressão grave
dos colegas lhe sugere a ocorrência de algo relacionado aos demais companheiros
ausentes. Inclusive Sodré, o esperado da noite não compareceu. Dividido entre o
desejo de se unir aos colegas e a necessidade de acompanhar a esposa, autoriza
que ela faça sozinha o percurso até o toalete. Brito se aproxima, o grupo
recua para a sacada, fechando atrás a porta. Isolam-se do saguão. Varela estende
para Herculano uma carta. Com Brito, reacomoda-se sob a luz tênue do lampião da
sacada.
Excelentíssimo
Senhor Deputado Dr. Alfredo Varela,
Temos
entre amigos conversado sobre a ajuda para a publicação do jornal destinado a
propagandear a purificação da República. De imediato, podemos apoiar com uma
quantia para imprimir, em tipografia alheia, os primeiros números do periódico
que remeterá as pessoas cujos nomes eu enviarei numa relação de cerca de dois
mil assinantes prováveis. Logo após o terceiro número, peço que envie um
cobrador. Empenharemos para que haja o pagamento das assinaturas, o que estimo
totalizar cerca de vinte contos de réis, com os quais montará a tipografia.
Para maior probabilidade de êxito no pagamento adiantado, recomendo facultar
assinaturas trimestrais, semestrais e anuais. Com relação a sua atitude, tão
digna nos tempos infamíssimos de hoje, asseguro que é quase unânime neste
Estado, e na grande família monarquista, à exceção de poucos mal orientados, a
disposição em dar-lhe franco apoio na propaganda para guerrear as oligarquias e
salvar o país. Até que a moral se restabeleça nas práticas administrativas,
parece-me que o objetivo comum deve ser a implantação da Ditadura Republicana.
Se esse também for o seu parecer e se aprovar os alvitres expostos por mim de
como publicar o jornal tão ansiado pelos amigos daqui, peço responder-me com
urgência a fim de abreviar a remessa da lista que, por ser muito numerosa, dá
trabalho de alguns dias para ser feita.
Aceite
minhas estimas e saudações,
Leopoldino
M. de Andrade.
Da leitura, Herculano depreende que Varela é
tanto o articulador intelectual do movimento, como o elo com os monarquistas.
Mas é ansioso, pondera, reduzindo com este atributo receios quanto o
potencial de ameaça que o político possa ter em seus interesses no levante.
Finge que relê a carta novamente. Com isso se dá tempo para saber com agir com
relação ao inesperado objetivo comum aventado por Leopoldino. A precipitação de
Brito o favorece.
-- O que esse senhor entende por ditadura
republicana?
-- Ora, o fechamento do Congresso, responde
Varela.
-- Não está escrito isso aqui.
-- Mas desde a Roma antiga é esse o
entendimento, fala Agostinho.
-- Sei disso, mas é bom que esses senhores também
elucidem isso.
Herculano observa impaciência nos demais ao
som do primeiro sinal para o início do terceiro ato. Indaga uma preocupação.
-- Imagino que Sodré esteja ciente do teor da
carta.
-- Deixei-o conversando com Lima e Fabrício
sobre os termos, responde Varela.
-- Quer amadurecer a questão, o que é
normal, acrescenta Agostinho.
Sodré não
gostou dos termos, infere
Herculano. Permanece quieto, numa tentativa de levar os demais a falar.
Exatamente o que acontece na voz de Varela.
-- Penso em ir para São Paulo e fechar um
acordo inicial. O que acha?
-- Sodré sabe disso?
-- A interlocução ainda está comigo e precisamos
do jornal.
-- Recomendo que o ouça.
-- É só para pôr a procissão na rua, não
para definir a ladainha, justifica Morais.
-- O conteúdo da carta é claro: pede
concordância com a reza.
-- Pactos se ajustam, retruca Agostinho, e a
princípio é o que você sempre quis.
-- Sim, como um pensador, não como um
seguidor norteado pela visão de quem de direito. A precipitação pode atrapalhar
a nomeação do comando aspirado e é melhor que todos se lembrem de que somos os
comandados.
O argumento gera hesitação. Varela se desgarra
do impasse.
-- Temos de correr riscos. Se decidirmos já,
consigo pegar o noturno e amanhã posso chegar a um bom termo com Leopoldino,
sem desperdiçar tempo.
-- Eu voto na sua ida, fala Morais. Ergue o
antebraço e pergunta: -- Quem mais?
Vacilante, Brito endossa o gesto e fita Herculano
de braço abaixado. O único. O descompasso parece gritar e causa mal-estar nos
demais. De novo, Varela passa por cima do percalço.
-- Só falta decidirmos quem falará com Sodré
sobre a nossa decisão.
Agostinho se prontifica, Morais também. Ao
som do segundo sinal, retiram-se em companhia de Varela. Brito, confuso com a
reação de Herculano, indaga-o.
-- Por que votou contra?
-- Expus as minhas razões.
-- A troco de quê, se podemos confirmar o
terreno que pisamos?
-- A recíproca também é verdadeira.
-- Não pensei por esse lado. Crê que Sodré concordará
com os termos?
-- No passado foi contra quem ousou conter a
indisciplina parlamentar.
-- Porém, essa é a chance de ter a
presidência perdida para Campos Salles.
-- Razoável supor algum pudor.
-- Se houver mudanças dos termos, caímos
fora.
-- As coisas não são tão simples assim.
-- O contrário são oportunismos.
-- Próprio das guerras.
-- Não é o caso. Nem questão de tampar o sol
com a peneira.
-- Sei disso.
Toca o terceiro sinal. Brito pensa na esposa e na sogra à sua espera
no camarote.
-- Vamos entrar?
-- Ficarei um pouco mais.
-- A gente se vê depois.
-- É bom ter você junto.
-- Em frente – até onde der.
Sozinho, Herculano mira a paisagem noturna,
em porte alteado pela satisfação. Ao votar contra a sua aspiração, crê que reforçou
o conhecimento alheio acerca da sua obediência à hierarquia. Preferiu o risco
da divergência falsa ao perigo da convergência verdadeira. Essa só frisaria suas
crenças e o enfraqueceria no caso dos termos propostos virem a ser repactuados.
Venceu seus rigores e avançou na criação de uma cortina de fumaça com o propósito
de proteger seus interesses. Hei de formar e comandar uma tropa popular.
Essa será a força real desse levante... A ambição se solta das amarras da
retidão e o desejo de poder se expressa: Por que Sodré, se eu posso ser o
chefe da nação? Empossado dessa confiança, tomado dessa excitação, retorna
ao camarote, onde Páscoa palpita ora pela aflição de pensar que o marido a
procura, ora pelo frenesi despertado pelo encontro que acabou de ter com Grego.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S.
Campos
Copyright
de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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