quarta-feira, 6 de maio de 2015

Capítulo Cinquente e Dois

SACO DE GATOS


Herculano e Brito são os últimos a chegar a uma reunião na casa de Agostinho. Como uma lufada de vento no rosto, a visão dos presentes tem efeito em Herculano. Ignora quem seja o jovem civil, mas desconfia dos trajes elegantes e do ar petulante. Conhece bem o capitão Morais e de vista, os deputados estaduais Alfredo Varela e Barbosa Lima. Tem problema com esse e uma opinião inconclusa quanto aos outros.
Apresentado a Fabrício do Vale Queiroz, associa o sobrenome ao mineiro barão de Campos Altos, que teve sua carreira pública interrompida pela queda da monarquia. Deve ser filho dele, pensa, fato que o remete para a ideia da perenidade dos navegantes do turbulento oceano político, onde os náufragos de ontem ressurgem em embarcações capitaneadas pelos responsáveis da temporária submersão. E há Barbosa Lima.
Formado pela Escola da Praia Vermelha, sem vida militar, Lima conspirou contra Deodoro e se tornou homem de confiança de Floriano Peixoto. Anos depois, indiciado como articulador do atentado frustrado à vida de Prudente de Morais, talvez ciente das tramas da guerra de Canudos, salvou-se de acusações, como os demais. Perdeu apoio eleitoral em Pernambuco, seu estado de origem, e Julio de Castilho o salvou, no Rio Grande do Sul, por onde se elegeu como deputado federal em 1900. Atualmente defende direitos trabalhistas. Nesse cenário, Herculano dimensiona as dificuldades de armar um golpe de Estado de acordo com as suas aspirações.
Agostinho inicia a reunião. Relata que tem conversado com cada um sobre como salvar a Pátria dos abusos do poder que a assolam e os congregou ali por achar que soou a hora de prosseguir em conjunto as reflexões.
-- Esse soar seu deu com o recente discurso do capitão Dias na Escola e creio que suas palavras entrarão para a história como a senha pública do levante que purificou a nossa República.
Herculano aprecia a deferência a si. Comentários a respeito são feitos, seguidos da discussão de como sensibilizar outros para a urgência dessa purificação. Fabrício ouve e fuma, soltando círculos de fumaça para o alto. Cigarro e pose incomodam Brito. Varela acha essencial que tenha uma gazeta.
-- Só se faz oposição com um jornal.
Morais retruca num tom humorado.
-- Com certeza, mas como arcar com os custos?
 -- Não se preocupe com isso, responde Fabrício. Temos um representante conversando com amigos daqui e de outros estados sobre a formação de um fundo.
-- A quem o senhor se refere quando diz temos? – pergunta Brito.
-- Ao grupo de cavalheiros que represento. Para além do interesse na propaganda da causa, acreditam que as vendas do jornal irão sinalizar a hora certa para realizarmos o levante em prol da República.
-- Lembro que apenas iniciamos as discussões conjuntas das muitas que deverão ocorrer entre nós e que definirão cada passo a ser dado, enfatiza Agostinho.
-- Oportuno lembrete, Major, declara Morais. -- E o ponto de partida dessas discussões refere-se a quem será o comandante da nossa marcha.
-- Só vejo uma pessoa: Lauro Sodré, diz Lima.
Herculano e Brito preocupam-se em ter no comando do levante um defensor do Congresso, enquanto os colegas militares e Varela endossam a indicação.
-- Nosso representante levará essa indicação aos possíveis apoiadores e também ouvirá as suas preferências, acrescenta Fabrício, apagando o cigarro no cinzeiro.
-- Decidiremos de modo democrático e conjugado com o princípio da viabilidade, desde que precisamos de um nome que a opinião pública legitime, esclarece Varela.
-- Sem o peso da algibeira a influenciar a decisão final, frisa Morais.
-- Não há menor chance de haver tal pressão, assegura Lima.  
Herculano se expressa com relação à sua preocupação.
-- O senador Sodré já está ciente dessa perspectiva?
-- Sim e estuda as possibilidades do apoio que possa vir a ter.
Agostinho toma a palavra.
-- Outro ponto importante de nossas tratativas diz respeito aos princípios que irão nortear o futuro governo. No entanto, proponho deixarmos essa discussão para quando tivermos a confirmação do nome do nosso comandante, uma vez que terá um papel fundamental na condução desse debate. O que acham?
Herculano associa a razão da declaração à conversa que teve dias atrás com o colega. Como os demais, concorda com a proposta feita pelo major e se posiciona para reduzir possíveis inseguranças criadas com as suas defesas de fechar o Congresso.
-- O senador tem os atributos indispensáveis para moralizar a prática republicana nos três poderes.
Brito estranha a declaração, já Agostinho a aprecia.
-- Fico contente com a confiança do grupo e reitero o que tenho dito para alguns dos senhores: não podemos desperdiçar as insatisfações atuais com o governo. Temos de aglutinar todas as forças à disposição em nossa cidade e país para construirmos as bases de um levante vitorioso.
Tão logo Brito chega com Herculano à rua, desabafa o seu estranhamento.
-- Não entendi a sua declaração de moralizar os três poderes.
-- Um pouco de pragmatismo para Agostinho não ficar precavido comigo.
-- Será pragmático também se pactuarem a manutenção do Congresso?
-- No tempo certo e de modo certo, influenciaremos a coisa certa a ser feita.
-- Confiante.
-- Por que não?
-- Fabrício é filho do barão de Campos Altos, não é?
-- Penso que sim.
-- Então o que esperar desse saco de gatos que ainda tem um Lima?
-- A deposição com as alianças possíveis, como disse Agostinho.
-- Será a mesmice de sempre.
-- Está a se precipitar.
-- Com conhecimento de causa. Melhor irmos devagar com o andor, porque esse santo republicano tem tudo para ser de barro.
Pressionado pelos mesmos receios, Herculano escuta sem retrucar.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


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