quinta-feira, 14 de maio de 2015

Capítulo Cinquenta e Oito

DE CASCAS DE BANANAS E DE SONHOS


Num café na esquina da Rua Ouvidor com a Uruguaiana, Emiliano põe o Comendador a par do encontro que teve há pouco com Theodoro, no Palácio do Catete. O relato sem boas notícias enerva Ferdinando.
-- Ainda mostro pra esse sujeito com quantos paus se faz uma canoa.
-- Não destempere! Ele disse que agora terá mais tempo para ver o que pode fazer pela desocupação do casario.
-- Esse agora prolonga desde dezembro.
-- Por causa das reformas. Não podemos negar que ele anda bem atarefado.
-- Pois se não mexer logo, mexo eu. Tenho casca de banana para jogar. Ele irá escorregar feio.
-- Escorregamos nós também. Conhece bem o tipo e o pai.
O barulho de uma britadeira na Uruguaiana invade o espaço e enerva ainda mais Ferdinando. Propõe ao amigo pagar a conta e irem para outro local.
Durante o trajeto, a reurbanização se apresenta no som e no trabalho das picaretas, nos escombros das demolições e no tráfego congestionado pelas obras que alargam as ruas. Os amigos passam diante da venda Ambos os Mundos, com a sua carcaça à vista e defrontada para a intacta loja Os Materialistas. No quintal do estabelecimento, Fortunato e Correia conversam.
Fortunato nasceu em León, na Espanha. O pai, militante anarquista, morreu num confronto entre a polícia e trabalhadores. No mesmo ano, em 1873, o então garoto desembargou na cidade, com o tio, fugitivo da repressão política, e ainda acompanhado das irmãs e da mãe, que aqui se casou com um lisboeta. Após a morte do padrasto, Fortunato assumiu a loja e a rebatizou com o nome atual. Prosperou no comércio e, como o pai, tornou-se um anarquista.
Correia, até onde sabe, tem sangue de índio, de alemão, de negro e de português. Não professa doutrina política e se condói com a pobreza. Preocupado com a pouca ação de Vicente na defesa dos desabrigados, comenta com o patrão sobre o discurso de Herculano, que ainda ecoa na sua cabeça.
-- Penso em ir conversar com ele. Quem sabe pode ajudar o Vicente nas coisas do CCO.
Fortunato faz cara feia.
-- Aposto que é positivista. Não se fie em falatório desse povo porque pregam a ordem e a submissão. Ainda mais um militar que tem a lei da garrucha.
-- Tive boa impressão dele. Chamou a família de cada um de pequena pátria e defende a instrução, como o senhor.
-- Vá lá, mas a Pátria é o mundo todo e toda a gente.
-- Entendi que pro Capitão isso é a humanidade, o grande Ser.
-- E a fortificação do espírito da rebeldia, ele prega? Duvido!
-- Combateu a obediência servil. Disse que rebaixa o caráter e abate o moral
-- É. Mas pergunta pra ele, se acredita na igualdade. Descobrirá que não.
-- Pra quem defende a República, perante a lei todos os homens são iguais.
-- Lei! O grande problema, Correia. A do céu quer acarneirar todo mundo. A da terra, pôr cabresto na gente a ferro e fogo. Não há como ser livre e igual desse jeito. 
-- É muita filosofia, seu Fortunato. Tem de haver ordem.
-- Sim, mas construída com o entendimento, Correia.
-- Isso leva tempo e os desabrigados precisam de ajuda pra ontem.
-- No imediato, só a fraternidade pode lhes prover.
-- Não tem pra tanta gente. Esse é o problema.
-- Infelizmente, a anarquia não acontece de pronto, mas devagar e sempre, se houver as ferramentas certas. Teve um grego que disse: com uma alavanca, eu levanto o mundo. Pois eu digo: dê ensino, explique para qualquer inteligência como a opressão acontece, e ajude o povo a negar a autoridade dos opressores que, com essas três alavancas e por conta própria, os oprimidos do mundo todo descobrirão como sair da miséria e tocar suas vidas de um jeito melhor que o da cartilha da religião e do governo. 
Correia acha que o patrão é um sonhador, como ele próprio. Sonha em ver os sofredores todos se unindo de vez para exigir condições melhores de vida. Mas como isso pode acontecer? É a questão que o faz pensar no Capitão.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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