segunda-feira, 4 de maio de 2015

Capítulo Cinquenta

DE DEMOLIÇÕES E DE UM DISCURSO


Amanhece e a Avenida Central exibe a sua materialidade desfalcada. Mais parece um local fantasma, com o abandono devassado dos seus imóveis. Nos últimos dias ocorreu ali a desocupação final. Quem pôde levou telhas, pisos e o que mais conseguiu remover da propriedade. Outros deixaram portas e janelas velhas, que batem ao sabor do vento de quando em vez. Entulhos também ficaram para trás, nos passeios. E avisos do novo endereço, fixados nas fachadas, caem e voam, perdendo-se adiante.
Antes do sol madrugador se levantar, operários despontam na Avenida. Como pelotões em armas, carregam pás, picaretas, cordas e dinamites. Distribuem-se ao longo do espaço. Afugentam indigentes de casarios e preparam a artilharia.
Sinos da igreja repicam os chamados dos fieis para a missa das seis deste domingo de 28 de fevereiro de 1904. Soam como vozes de comando para aqueles na Avenida. Lá alvos são mirados e grande parte do passado de São Sebastião do Rio de Janeiro começa a vir abaixo. O temporal de verão desaba no final do dia.


É manhã de abertura do ano letivo na Escola Militar da Praia Vermelha. Mestres, estudantes, familiares e convidados acomodam-se no auditório da Escola. À coxia, Hilário está com os nervos à flor da pele. As rajadas de vento da véspera destelharam o palco do auditório, a água jorrou e os estragos quase suspendem a solenidade. Só não o foi porque Correia, conhecido daquele telhado, não lhe faltou. Prontamente, atendeu seu pedido de socorro e acaba de repor as telhas no lugar. Pelo madeirame, confere se tudo está em perfeita ordem para proteger a solenidade do instável humor do verão.
A vistoria, que nunca termina, exacerba Hilário preocupado também com o atraso do orador escolhido para encerrar a cerimônia. Olha por entre as abas da cortina do palco e constata o auditório lotado. Vira-se e avista um mensageiro que adentra a coxia. Pressente o pior. Como uma bala disparada, sai ao saber que o orador não virá, pois foi acometido de um repentino mal-estar. A trajetória termina no gabinete do comandante da Escola, diante de quem, Hilário avisa sobre a inesperada ausência e solicita a indicação de um substituto. Após breve reflexão, Costallat indica Herculano.
Na eminência do comandante se dirigir com a sua comitiva para o auditório, Hilário faz o que precisa ser feito, sem tempo para estranhar o nome indicado. Chama Herculano na coxia e lhe relata o contratempo e seus desdobramentos.
A escuta do novo orador se processa em mente rápida. Lembra-se do discurso que Benjamin Constant proferiu no palco adiante e que o projetou nos eventos responsáveis pela deposição da monarquia. Percebe-se diante de oportunidade similar. 
-- Estou às ordens.
-- Por favor, então, senhor doutor Capitão, aguarde num lugar onde eu possa vê-lo, ali, por exemplo, porque um imprevisto a mais nesta manhã eu não respondo mais pela minha habitual tranquilidade.
Indiferente à insubordinação nervosa de Hilário, Herculano senta-se na banqueta indicada e avista o operário, estirado em uma viga do urdimento. Ainda o ouve mandar Correia descer ou ficar quieto onde está porque a cerimônia irá começar em instantes. Depois o som e a movimentação ao redor lhes são alheios. Nem mesmo o início da solenidade quebra a sua concentração no que dizer para instigar ou adensar a oposição ao governo da plateia. Pensa até em se valer de palavras de quem nunca respeitou, mas de apelo aos florianistas ali reunidos. Estabelece-se a tensão entre a força do querer e a da retidão num campo emocional contaminado pela indisposição a se sacrificar mais em nome de uma inflexibilidade que o afasta das lutas de poder.
Chamado ao palco, a imagem da República lhe vem à mente. Diante da plateia espera o final dos aplausos enquanto depreende a satisfação de Brito e a surpresa de Agostinho e de Aurélio em vê-lo como orador. Cumprimenta as principais autoridades e inicia o discurso.
-- Sinto-me honrado em celebrar o início de mais um ano eletivo. Instruir é atender a necessidade vital que os humanos possuem de desenvolver a si mesmos e o meio onde vivem. Quando esse desenvolvimento se dá por meio da inteligência esclarecida, de aptidões capacitadas pela técnica e da cooperação decorrente do culto das afeições altruísticas, mais os resultados provenientes dessa tríade se somam aos da próxima geração, os desta aos da seguinte, e assim por diante. Em paralelo, durante essas sucessões, a educação cumpre a sua missão de força propulsora da civilização.
Nossa Escola tem contribuído para a evolução de nossa sociedade e defendido a Pátria ao longo da sua marcha histórica. Filhos e mestres desta Casa asseguraram no passado nossa integridade territorial, lutaram por uma sociedade brasileira mais humana na vitoriosa causa que decretou o fim da escravidão e ainda proclamaram a República, imbuídos da convicção de ser a forma de governo mais elevada para o aprimoramento continuado dos indivíduos e de suas instituições. De forma similar, filhos e mestres dessa Casa, na atualidade, defendem nossas fronteiras, edificam pontes e estradas de ferro, unem regiões longínquas do país também por meio da instalação de linhas telegráficas, sem se esquecer dos inúmeros que promovem a ordem, a segurança e servem à Pátria nos mais diversos campos de atuação.
Bastam esses poucos exemplos para vivificar a compreensão de que nossa Escola não forma apenas a força armada do país, mas cidadãos. Em particular, a partir do decreto de nº 330 de 12 de abril de 1890, ensinamos que somos um “importante cooperador do progresso como garantia da ordem e da paz públicas, apoio inteligente e bem intencionado das instituições republicanas, jamais instrumento servil e maleável por uma obediência passiva e inconsciente que rebaixa o caráter, aniquila o estímulo e abate o moral”. De tal modo e consoante com o referido decreto, a educação militar no Brasil visa atender aos “melhoramentos da arte da guerra, conciliando as suas exigências com a missão altamente civilizadora, eminentemente moral e humanitária que está destinada aos exércitos no continente sul-americano”. Formar soldados-cidadãos, agentes da ordem e do progresso, sob a égide de uma autêntica República.
Vivemos momentos de mudanças inadiáveis. Urge que o Brasil e a nossa Capital Federal se adequem às exigências da modernidade do recém-nascido século 20. Contudo, quando, em nome dessa urgência, milhares de imóveis são desapropriados por um valor radicalmente inferior ao que valem e inúmeras famílias despejadas do seu lar, sem ampará-las e sem impedir a exploração do infortúnio, isso gera oportunismos, como os atuais praticados pelo setor imobiliário, e injustiças de toda ordem.
Ao mesmo tempo, quando se contrata antigos concessionários de um morro para derrubá-lo e lhes faculta o lucro da construção e da venda de imóveis no terreno resultante, isentos de impostos, tais projetos forjam um capitalismo privilegiativo que, por um lado, vilipendia os recursos e as virtudes da Pátria, por outro, prolifera a miséria e impõe o atraso à grande maioria da população e ao país. 
Quando o Executivo propõe projetos como esses, que desviam para o mal os princípios morais e as práticas materiais da Pátria, quando o Legislativo os aprova e o Judiciário os defende, quando isso acontece os Três Poderes Republicanos cometem um crime contra a própria humanidade. Afinal, esse Ser, formado por todas as famílias-pátrias, não pode civilizar-se quando há exploração do homem pelo homem.
-- Morra o Bota-abaixo, alguém grita na plateia.
Olhares suspeitos se cruzam e Costallat se reacomoda da poltrona, surpreso com o orador que escolhera. Já Herculano enuncia o tema da tensão que confrontou na coxia.
-- Estou certo de que esse maléfico cenário traz à lembrança de muitos a figura do general Floriano Peixoto, quando, nos últimos dias do seu governo, disse à mocidade militar de então: “A vós que sois moços e trazeis vivo e ardente no coração o amor da Pátria e da República, a vós corre o dever de ampará-la e defendê-la dos ataques insidiosos. Diz-se e repete-se que a República está consolidada e não corre perigo. Não vos fieis nisso, nem vos deixeis apanhar de surpresa. O fermento da restauração agita-se numa ação lenta, mas contínua e surda. Alerta, pois!”.
Agora as palmas interrompem a fala, em meio às exclamações de vivas ao general Floriano. Herculano prossegue.
-- Como deixar de identificar a restauração de privilégios monárquicos nos projetos de reurbanização em curso na Capital Federal?
Como ignorar a supremacia de interesses particularistas na condução dos trabalhos da União e de suas Unidades Federativas?
Como permanecer alheio à ignorância, quando não à omissão, do Poder Executivo em coordenar esforços eficientes para reduzir as desigualdades sociais no país?
Perguntas que lanço confiante de que os integrantes das Escolas militares e do Exército jamais se esquivarão em dar respostas patrióticas. Somos filhos do povo, conhecemos na carne as necessidades dos humildes, e fomos instruídos para nos tornar agentes cooperadores da edificação de um Governo efetivamente republicano.  É esse conhecimento e essa cooperação que nos moverá em mais um ano eletivo.  
Bem-vinda Mocidade Militar! Salve Comando, Oficiais, Praças e Auxiliares. Façamos de 1904 outro marco da nossa missão de servir a Pátria, servindo a República, a Família e a Humanidade.
Palmas fortes são dadas, algumas, de pé. A visão inebria Herculano. Alunos o fitam, maravilhados em vê-lo proferir em público reflexões que costuma fazer de modo discreto.  Ainda que preocupado com a fala do amigo, a satisfação reluz em Brito, o entusiasmo, em Agostinho. Dirigem-se para os cumprimentos, deixando um apreensivo Aurélio na poltrona. Outros que caminham para as saudações são soldados afetados pelas desapropriações ou pelos despejos. Sentem-se defendidos pelo colega e admiram sua coragem para criticar o governo num auditório saudoso de bravura similar.
Correia se espicha para ganhar altura superior ao grupo que rodeia o militar no centro do palco. A oportunidade se realiza quando o olhar de Herculano cruza com o dele na coxia: o operário faz um sinal de vitória com a mão fechada do braço erguido. Obtém um deferente menear de cabeça e, satisfeito, deixa o local.
Costallat segue com sua comitiva pelo corredor da Escola. 
-- Terás problema, diz um general ao seu lado.
-- A ocasião é propícia aos arroubos de retórica, responde o comandante, procurando minimizar os receios e arrependido em ter indicado Herculano para falar.
-- Queres passar por um defensor da livre-expressão militar?
-- Até parece que não me conheces!
-- Cuide então para isso não virar um barril de pólvora.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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