O SEGREDO DE NINON DE VALOIR
Coelho aproxima-se de uma botica. À porta,
avista BV a se insinuar para uma catita. Na primeira oportunidade, chama-o
fazendo um sinal com a cabeça e o espera na outra calçada. Licenças pedidas à
dama, em passos tranquilos, BV aproxima-se.
-- O que houve?
-- Perdi o homem.
-- Perdeu como?
-- De repente. Ele partiu no coche com a
família e a ama numa carroça alugada. Pensei: tão voltando pra casa. Larguei a
canoa pra lá, corri, tomei o bonde e fui pra Botafogo. Batata: o casarão estava
de janela aberta e com movimento. Montei a guarda. Só que, mais tarde, o
sujeito me surge vindo de não sei onde. Não sei se enquanto eu ia, ele apeou no
meio do caminho ou se saiu antes d’eu chegar. Achei melhor te avisar.
-- Alguma novidade mais?
-- Nenhuma. O banhista não voltou.
-- Olho atento no casarão daqui pra frente.
-- Sem dar na vista será difícil. Nem dá pra
eu fingir que sou pescador. A casa fica no final da rua, longe da praia. Só tem
o muro do hospício e nada mais.
-- Dê o seu jeito, enquanto resolvo isso com
o patrão.
Separam-se. BV monta o Tufão e parte em
direção ao solar.
-- Cadê Abdias?
-- Deu uma saidinha, responde o jardineiro
Ladário.
-- E o patrão?
-- Petrópolis.
Num momento em que a patroa se encontra na
fazenda dos pais, BV acha possível que o patrão esteja na Casa Rosada. Por
que não? Confere a sua intuição e deixa o assunto em suspenso quando não o
encontra onde imaginava estar.
Ninon toma conhecimento dessa procura e se
intriga. Desde a terça-feira gorda, não viu mais Theodoro. Entende que o
resultado do Torneio o tenha chateado. Contudo o sumiço se prolonga em demasia.
Enrabichou com alguém? Só pode ser.
Aproxima-se da penteadeira de espelho de
cristal. Examina a gulosa decadência das pálpebras, das faces e do pescoço. É
interrompida pelo aviso de que Abreu Vaz pede para lhe falar com urgência.
Recebe o amigo na sala ao lado.
O juiz se mostra chateado. Durante o almoço,
no Clube dos Diários, um amigo lhe confidenciou rumores de que Theodoro estava
por detrás dos artigos jornalísticos contra o habeas corpus concedido a Pietro.
Os dois suspeitaram que o motivo só pudesse ser uma desforra à derrota sofrida no
Torneio. Abatido, decidiu espairecer no Jóquei. Entre uma prosa e outra, um
velho conhecido lhe comentou a mesma história.
-- Onde está o espírito de competição desse
jovem? – Exclama Abreu Vaz para Ninon. -- Não posso dar o troco sem criar um
problemão. Em nome da nossa amizade, peço ajuda para apaziguar essa animosidade
contra mim.
-- Conte comigo. Por acaso o viu hoje?
-- Não e ainda bem. É insuportável lidar com
um inimigo como se amigo fosse.
-- Talvez esses comentários tenham uma
segunda intenção.
-- Por que diz isso?
-- Às vezes, para abater um alvo é preciso
abater outro como isca.
-- Está a defendê-lo.
-- Não. Apenas faço ponderações. Por mais
desejosa que seja a vitória no Torneio, a derrota me parece um motivo menor
para o nosso amigo gastar poder.
-- Vocês mulheres desconhecem o efeito
irracional que causam nos homens.
-- Deveras, meu amado, mas perdas materiais
são mais doloridas que as carnais.
-- Nem sempre, Ninon, nem sempre.
-- Considere que os arranjos do progresso
não têm sido bons para todos.
-- Ninon, não tenho nada a ver com as
disputas encarniçadas desses arranjos. Meu interesse era na Justiça Sanitária,
não em orçamentos volumosos.
-- Sei disso. Mas talvez um adversário do
nosso amigo esteja as turras com ele. Mirou você para que crie o problemão e desse
modo abatê-lo com o que você sabe dele.
-- Ouviu algo a respeito?
-- Elucubro apenas, meu querido. Nossa
capital se tornou uma praça tentadora.
-- Como pude deixar a indignação vedar-me a
análise dos fatos!
-- Compreensível, estava sob o efeito das
insinuações.
-- Exato! Só pensei quão torpe era alguém
querer roubar o brilho da minha vitória.
-- Que me proporcionou uma noite adorável.
-- Diz isso por ser bondosa. Conhecemos bem
a verdade, diz com um ar desolado.
-- Sim, conhecemos. Só o seu cérebro acende
a admiração do meu.
-- É o mínimo que posso fazer. O relógio da
vida foi implacável comigo.
-- Por que não darmos a chance de ajustar os
ponteiros?
-- Não, não. Prefiro a aflição da dúvida ao
terror da confirmação.
-- Não se apegue a um incidente. Pode ter
sido uma ocorrência circunstancial.
-- A primeira sim, a segunda talvez, já a
terceira não e muito menos a quarta.
-- Desconhecia essas outras tentativas.
-- Perdoe-me, mas precisava conferir.
-- Com razão. Mas pode ter escolhido a
pessoa errada para tentar.
-- Pensando por esse lado, admito: possuíam
volúpias comuns. Não despertaram nem um leve fremir. Estava bem atento.
-- Nada pode funcionar com atenções
demasiadas sobre si.
-- De novo me poupa com a sua generosidade,
mas vamos mudar de assunto, é embaraçante e dolorido falar disso.
-- Aguente um pouco mais. Para o seu bem
insisto que tente outra vez.
-- Oh, minha deusa! Um homem tem sinais o
tempo todo, suscetível que é aos estímulos. Mas nada acontece. Nem uma pressão
mínima, somente a placidez, prenha de vontade, se puder compreender a
disparidade dessas sensações.
-- Recomendo que tente com uma donzela
catita e desejosa de ser acolhida.
-- Não sei...
-- Programei-a para o Leilão de Aleluia, mas
posso retirá-la, se quiser.
-- Melhor não. Reduzirá as ofertas...
Causará insatisfação nos interessados.
-- Ainda não expedi os convites.
-- Não quero que perca renda por causa de
mim, nem eu pagar para sofrer. Só com você esqueço minha pena e só por você
movo mundos e fundos.
-- Peço-lhe que mova o seu mundo com a
donzela – e, se a hora se fizer, mova depois o fundo para a Casa Rosada, caso
contrário, não.
-- Ninon! Um homem tem de arcar com o ônus
de ser o que é.
-- E negar um mimo de quem o quer tão bem?
-- Jamais. Nego o enfrentamento de novas
constatações.
-- Pense. Posso aguardar a resposta até
horas antes do Leilão.
-- Quando acontecerá?
-- No próprio sábado de aleluia.
-- Mas de noite haverá a estreia da ópera no
Theatro Lyrico...
-- E, em seguida, o repicar jubiloso do
carrilhão.
-- Você é mesmo uma diabólica preciosa!
Abreu Vaz parte, e do conversado o que mais
preocupa Ninon é o amigo não ter encontrado com Theodoro em pleno sábado. Onde
ele está? Sabe que tem lhe negado a entrega apaixonada por um tempo além do
recomendado. Pode ter se exaurido da espera e alçado voo para outra paragem. Isso
não é bom. Ainda mais porque Abel Adonis a alertou sobre o sucesso de mère
Louise, uma legítima cortesã parisiense, recém-instalada na Capital Federal.
Por um acaso ou numa ação deliberada, a concorrente pode descobrir seu segredo
guardado a sete chaves: Não é francesa e, sim, brasileira. Chama-se
Antonina Flores. Fugiu aos treze anos pelo porto de Santos com um francês para
Paris, onde conheceu
Clement, um solteirão, amante da boa vida e descendente da antiga nobreza que
vivia dos contatos da sua família para intermediar interesses e obter rendas.
Abandonou o outro e se uniu ao nobre, com quem se refinou e iniciou sua
carreira de cortesã. Apesar de tido vários amantes, nunca se separou de fato de
Clement. Juntos aportaram no Pharoux, em dezembro de 1888, de onde viajaram
para a Amazônia, integrados numa excursão de naturalistas europeus, financiada
por um conde alemão. Durante a expedição, Clement morreu de malária e Ninon,
como já se chamava nessa época, embarcou de volta para Paris. O testamento do
falecido a beneficiou com a propriedade em que morava e com um montante
pecuniário. Vendeu a casa e com seus pertences retornou ao Brasil, em
1890.
Naqueles
dias o país acordava para o consumo conspícuo desencadeado pela especulação
financeira do período. E há muito os homens brasileiros amavam as francesas,
consideradas deusas do amor e do olimpo civilizado, com quem nenhuma esposa
podia se igualar, mesmo a mais ardorosa. Normal que Ninon se assomasse nesse
ambiente. Trouxe de Paris algumas moças e abriu a Casa Rosada. Desde então
reina na cidade e teme ser desmarcada pela mère Louise numa disputa
territorial. A possibilidade também
pode se efetivar pelas mãos de Theodoro. Movido por ressentimentos carnais,
como os aventados por Abreu Vaz, pode querer investigá-la. Os riscos lhe
mostram a conveniência de alimentar melhor o amor próprio dele. Porém uma
questão se enuncia: se me entregar sem mais nem menos, não valorizará a
conquista. Precisa do triunfo. Como lhe dar a sensação de vitória?
A resposta se divulga por intermédio de
Soledad às moças da Casa Rosada.
-- A senhora vai a viajar para a Europa.
Todas querem saber o motivo, quando será e
por quanto tempo.
-- No lo sé, no lo sé, no lo sé, repete
Soledad.
-- Irá buscar garotas francesas?
-- Apaixonou-se e fugirá com a nova paixão?
-- Recebeu uma carta do amado que a deflorou
e voltará para os seus braços?
-- Ah, o amor!
Fantasias circulam e são compartilhadas com
os clientes.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S.
Campos
Copyright
de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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