quinta-feira, 14 de maio de 2015

Capítulo Sessenta

O SEGREDO DE NINON DE VALOIR


Coelho aproxima-se de uma botica. À porta, avista BV a se insinuar para uma catita. Na primeira oportunidade, chama-o fazendo um sinal com a cabeça e o espera na outra calçada. Licenças pedidas à dama, em passos tranquilos, BV aproxima-se.
-- O que houve?
-- Perdi o homem.
-- Perdeu como?
-- De repente. Ele partiu no coche com a família e a ama numa carroça alugada. Pensei: tão voltando pra casa. Larguei a canoa pra lá, corri, tomei o bonde e fui pra Botafogo. Batata: o casarão estava de janela aberta e com movimento. Montei a guarda. Só que, mais tarde, o sujeito me surge vindo de não sei onde. Não sei se enquanto eu ia, ele apeou no meio do caminho ou se saiu antes d’eu chegar. Achei melhor te avisar.
-- Alguma novidade mais?
-- Nenhuma. O banhista não voltou.
-- Olho atento no casarão daqui pra frente.
-- Sem dar na vista será difícil. Nem dá pra eu fingir que sou pescador. A casa fica no final da rua, longe da praia. Só tem o muro do hospício e nada mais. 
-- Dê o seu jeito, enquanto resolvo isso com o patrão.
Separam-se. BV monta o Tufão e parte em direção ao solar.
-- Cadê Abdias?
-- Deu uma saidinha, responde o jardineiro Ladário.
-- E o patrão?
-- Petrópolis.
Num momento em que a patroa se encontra na fazenda dos pais, BV acha possível que o patrão esteja na Casa Rosada. Por que não? Confere a sua intuição e deixa o assunto em suspenso quando não o encontra onde imaginava estar. 
Ninon toma conhecimento dessa procura e se intriga. Desde a terça-feira gorda, não viu mais Theodoro. Entende que o resultado do Torneio o tenha chateado. Contudo o sumiço se prolonga em demasia. Enrabichou com alguém? Só pode ser.
Aproxima-se da penteadeira de espelho de cristal. Examina a gulosa decadência das pálpebras, das faces e do pescoço. É interrompida pelo aviso de que Abreu Vaz pede para lhe falar com urgência. Recebe o amigo na sala ao lado.
O juiz se mostra chateado. Durante o almoço, no Clube dos Diários, um amigo lhe confidenciou rumores de que Theodoro estava por detrás dos artigos jornalísticos contra o habeas corpus concedido a Pietro. Os dois suspeitaram que o motivo só pudesse ser uma desforra à derrota sofrida no Torneio. Abatido, decidiu espairecer no Jóquei. Entre uma prosa e outra, um velho conhecido lhe comentou a mesma história.
-- Onde está o espírito de competição desse jovem? – Exclama Abreu Vaz para Ninon. -- Não posso dar o troco sem criar um problemão. Em nome da nossa amizade, peço ajuda para apaziguar essa animosidade contra mim.
-- Conte comigo. Por acaso o viu hoje?
-- Não e ainda bem. É insuportável lidar com um inimigo como se amigo fosse.
-- Talvez esses comentários tenham uma segunda intenção.
-- Por que diz isso?
-- Às vezes, para abater um alvo é preciso abater outro como isca.
-- Está a defendê-lo.
-- Não. Apenas faço ponderações. Por mais desejosa que seja a vitória no Torneio, a derrota me parece um motivo menor para o nosso amigo gastar poder.
-- Vocês mulheres desconhecem o efeito irracional que causam nos homens.
-- Deveras, meu amado, mas perdas materiais são mais doloridas que as carnais.
-- Nem sempre, Ninon, nem sempre.
-- Considere que os arranjos do progresso não têm sido bons para todos.
-- Ninon, não tenho nada a ver com as disputas encarniçadas desses arranjos. Meu interesse era na Justiça Sanitária, não em orçamentos volumosos.
-- Sei disso. Mas talvez um adversário do nosso amigo esteja as turras com ele. Mirou você para que crie o problemão e desse modo abatê-lo com o que você sabe dele.
-- Ouviu algo a respeito?
-- Elucubro apenas, meu querido. Nossa capital se tornou uma praça tentadora.
-- Como pude deixar a indignação vedar-me a análise dos fatos!
-- Compreensível, estava sob o efeito das insinuações.
-- Exato! Só pensei quão torpe era alguém querer roubar o brilho da minha vitória.
-- Que me proporcionou uma noite adorável.
-- Diz isso por ser bondosa. Conhecemos bem a verdade, diz com um ar desolado.
-- Sim, conhecemos. Só o seu cérebro acende a admiração do meu.
-- É o mínimo que posso fazer. O relógio da vida foi implacável comigo.
-- Por que não darmos a chance de ajustar os ponteiros?
-- Não, não. Prefiro a aflição da dúvida ao terror da confirmação.
-- Não se apegue a um incidente. Pode ter sido uma ocorrência circunstancial.
-- A primeira sim, a segunda talvez, já a terceira não e muito menos a quarta.
-- Desconhecia essas outras tentativas.
-- Perdoe-me, mas precisava conferir.
-- Com razão. Mas pode ter escolhido a pessoa errada para tentar.
-- Pensando por esse lado, admito: possuíam volúpias comuns. Não despertaram nem um leve fremir. Estava bem atento.
-- Nada pode funcionar com atenções demasiadas sobre si.
-- De novo me poupa com a sua generosidade, mas vamos mudar de assunto, é embaraçante e dolorido falar disso.
-- Aguente um pouco mais. Para o seu bem insisto que tente outra vez.
-- Oh, minha deusa! Um homem tem sinais o tempo todo, suscetível que é aos estímulos. Mas nada acontece. Nem uma pressão mínima, somente a placidez, prenha de vontade, se puder compreender a disparidade dessas sensações.
-- Recomendo que tente com uma donzela catita e desejosa de ser acolhida.
-- Não sei...
-- Programei-a para o Leilão de Aleluia, mas posso retirá-la, se quiser.
-- Melhor não. Reduzirá as ofertas... Causará insatisfação nos interessados.
-- Ainda não expedi os convites.
-- Não quero que perca renda por causa de mim, nem eu pagar para sofrer. Só com você esqueço minha pena e só por você movo mundos e fundos.
-- Peço-lhe que mova o seu mundo com a donzela – e, se a hora se fizer, mova depois o fundo para a Casa Rosada, caso contrário, não.
-- Ninon! Um homem tem de arcar com o ônus de ser o que é.
-- E negar um mimo de quem o quer tão bem?
-- Jamais. Nego o enfrentamento de novas constatações.
-- Pense. Posso aguardar a resposta até horas antes do Leilão.
-- Quando acontecerá?
-- No próprio sábado de aleluia.
-- Mas de noite haverá a estreia da ópera no Theatro Lyrico...
-- E, em seguida, o repicar jubiloso do carrilhão.
-- Você é mesmo uma diabólica preciosa!
Abreu Vaz parte, e do conversado o que mais preocupa Ninon é o amigo não ter encontrado com Theodoro em pleno sábado. Onde ele está? Sabe que tem lhe negado a entrega apaixonada por um tempo além do recomendado. Pode ter se exaurido da espera e alçado voo para outra paragem. Isso não é bom. Ainda mais porque Abel Adonis a alertou sobre o sucesso de mère Louise, uma legítima cortesã parisiense, recém-instalada na Capital Federal. Por um acaso ou numa ação deliberada, a concorrente pode descobrir seu segredo guardado a sete chaves: Não é francesa e, sim, brasileira. Chama-se Antonina Flores. Fugiu aos treze anos pelo porto de Santos com um francês para Paris, onde conheceu Clement, um solteirão, amante da boa vida e descendente da antiga nobreza que vivia dos contatos da sua família para intermediar interesses e obter rendas. Abandonou o outro e se uniu ao nobre, com quem se refinou e iniciou sua carreira de cortesã. Apesar de tido vários amantes, nunca se separou de fato de Clement. Juntos aportaram no Pharoux, em dezembro de 1888, de onde viajaram para a Amazônia, integrados numa excursão de naturalistas europeus, financiada por um conde alemão. Durante a expedição, Clement morreu de malária e Ninon, como já se chamava nessa época, embarcou de volta para Paris. O testamento do falecido a beneficiou com a propriedade em que morava e com um montante pecuniário. Vendeu a casa e com seus pertences retornou ao Brasil, em 1890. 
Naqueles dias o país acordava para o consumo conspícuo desencadeado pela especulação financeira do período. E há muito os homens brasileiros amavam as francesas, consideradas deusas do amor e do olimpo civilizado, com quem nenhuma esposa podia se igualar, mesmo a mais ardorosa. Normal que Ninon se assomasse nesse ambiente. Trouxe de Paris algumas moças e abriu a Casa Rosada. Desde então reina na cidade e teme ser desmarcada pela mère Louise numa disputa territorial. A possibilidade também pode se efetivar pelas mãos de Theodoro. Movido por ressentimentos carnais, como os aventados por Abreu Vaz, pode querer investigá-la. Os riscos lhe mostram a conveniência de alimentar melhor o amor próprio dele. Porém uma questão se enuncia: se me entregar sem mais nem menos, não valorizará a conquista. Precisa do triunfo. Como lhe dar a sensação de vitória? 
A resposta se divulga por intermédio de Soledad às moças da Casa Rosada.
-- A senhora vai a viajar para a Europa.
Todas querem saber o motivo, quando será e por quanto tempo.
-- No lo sé, no lo sé, no lo sé, repete Soledad.
-- Irá buscar garotas francesas?
-- Apaixonou-se e fugirá com a nova paixão?
-- Recebeu uma carta do amado que a deflorou e voltará para os seus braços?
-- Ah, o amor!
Fantasias circulam e são compartilhadas com os clientes.
                               
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


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