quarta-feira, 18 de março de 2015

Capítulo Dezoito

PERVERSIDADE


Herculano sentiu uma pontada no peito tão logo avistou o outeiro onde deviam aguardar a ordem de avançar rumo ao ataque simultâneo. Para lá se dirigiu mapeando os arredores de extensão coberta de vegetação baixa por onde seu olhar penetrava por entre galhos retorcidos. Uma e outra árvore, de caule fino, se destacavam na paisagem de céu intensamente azul, com algumas nuvens brancas, como pequenos flocos de algodão. O belo ou o inóspito do cenário pouco lhe importava, apenas a ausência de vantagem para a força inimiga naquele terreno. A tropa estaria em situação mais favorável.
A tarde caía quando terminaram de montar o acampamento e começaram os preparativos do jantar. A presença das mulheres nos afazeres, com os filhos por perto, dava ao local um ar de tempos de paz e trouxe a Herculano a lembrança da família. Mas essa estada foi rápida, pois ele afugentou suas indagações de como Páscoa poderia estar, o quanto Sofia crescera, se Quitéria as cuidava com o desvelo de sempre e se a idade não pesava em Tião do Congo para protegê-las a altura do seu passado de destemido sentinela. Não, não era hora de recordações, nem de inquietações que sugassem a concentração no confronto próximo.
A noite já ia longe quando o abafamento da barraca integrou Herculano ao redor de uma fogueira. Ali a prosa ainda corria solta, estimulada por Manuel Benício, ex-militar e correspondente de guerra vindo da outra brigada há poucos dias. Contava casos ouvidos durante a sua andança pela região e, de quando em vez, aproveitando-se da empatia despertada, lançava perguntas, nas quais Herculano reconhecia o interesse em obter material para reportagens. Calhou dos dois ficarem sozinhos e os fatos relatados por Benício mudaram do pitoresco para situações vividas pelas expedições anteriores. A cada palavra dita, na mente de Herculano, vantagens militares eram destruídas por erros eficientemente aproveitados ou estimulados pelos sertanejos.
Em região desconhecida, por mais de uma vez, os soldados penetraram o território dos adversários sem perceber que a estrada livre os levava para um cerco avassalador. Surpreendidos, descarregaram munições sem alvo à vista e se viram obrigados a fugir por estreitos desfiladeiros, onde tiros certeiros e uma avalanche de pedras os esperavam. Erros mais elementares e não menos nefastos também ocorreram. Uma expedição minguou de sede ao descobrir que carregara por léguas a fio um macaco de levantar cargas ao invés de bate-estaca para perfurar o solo e instalar a providencial bomba de água que transportavam. Ocorreu também de uma tropa partir para o ataque após uma longa e exaustiva marcha sem alimentação. Durante a investida ao arraial de Canudos, a fome era tanta que a mira inimiga foi esquecida pela possibilidade de abocanhar um naco de carne seca ou correr atrás de galinhas para ter o que comer. Em meio à perspectiva do suculento repasto, muitos tombaram alvejados. 
Os sertanejos, por sua vez, tiroteavam com método e disciplina, sem desperdiçar munição nem se abalar com as balas. Com maestria, convertiam em emboscadas e ataques-surpresas o conhecimento das trilhas da caatinga fechada e das passagens por entre escarpas íngremes. Mostravam-se ousados, dotados de uma capacidade de recuperação surpreendente e, a cada recuo imposto ao Exército, ocupavam posições estratégicas para a reorganização das forças legais, além de se apossar de armas abandonadas pelos soldados durante debandadas atabalhoadas.
O relato explicou para Herculano a origem de grande parte do poder bélico dos adversários e da sua superioridade guerreira. Desfez a suspeita de que os oponentes haviam recebido armamentos de rebeldes nacionais e sido treinados por força estrangeira. A ideia de um movimento restaurador da monarquia propagada pela imprensa também lhe pareceu outra mentira e a desavença comercial deflagradora da guerra se configurou numa cortina de fumaça a esconder as causas do conflito.
Sua expressão tensa inspirou confiança em Benício, que lhe revelou algo comprometedor acerca do comandante-geral da operação, reunido na outra brigada.
-- Arthur Oscar comprou menos provisão do que devia.
-- Como sabe?
-- Tive acesso ao quartel-mestre; tem muito pouca coisa lá.
A perspectiva de outro erro no carregamento de suprimentos adensou a inquietação de Herculano – e o espírito de corpo falou mais alto. 
-- O comandante deve ter tido suas razões.
-- Com certeza. Quando acha que será o combate?
-- Não tardará. Estamos próximos de Canudos.
-- Acho que haverá atrasos. Devemos atacar perto de 29 de junho.
-- Não se desgasta uma tropa com retardamentos desnecessários.
-- Nem para celebrar o aniversário da morte do Marechal de Ferro?
Herculano intuiu denúncias a caminho e tateou com cautela a revelação.
-- Um motivo de menor monta quando centenas de vidas estão em jogo.
-- Contudo forte o bastante para unir os florianistas com a vitória e guiá-los numa deposição do presidente.
Dessa vez a cortina de fumaça se turbilhonou pra valer ante Herculano.
-- Com base em quê diz isso?
-- Em suspeitas que investigo. Tudo indica que um golpe de Estado está sendo montado. Até o presidente já falou que, por detrás dos sertanejos, trabalha a política.
-- Desconheço essa declaração, mas penso que se refira às ideias do beato.
-- Por que um penitente se daria ao trabalho de depor o governo se crê no apocalipse em 1900 e vê na proclamação da República o sinal do fim?
-- No entanto, pegou em armas.
-- Em defesa ao ataque manejado pelos políticos da região. Conselheiro não passa de um remédio atrasado da nossa moléstia social e que apareceu nessas terras sob a forma da religião. Porém cometeu erros: esvaziou as lavouras ao atrair o povo para sua comunidade cristã-socialista e apoiou a chapa da oposição que se elegeu.
-- A partir desses fatos, deduz que a guerra foi criada para servir ao golpe?
-- Criada para os fins daqui e usada pelos florianistas para seus propósitos na Capital Federal. Uniram a fome com a vontade de comer.
A perversidade da má-fé conjecturada soou tão violentamente, que Herculano desconfiou de que Benício estivesse lhe pondo a prova.
-- Não está a exercitar em demasia a sua imaginação de escritor?
-- Antes estivesse. Mas estou certo de que querem se valer da insegurança nacional para derrubar o governo e pôr no lugar o vice que é egresso da tradição local.
-- Essa suspeita esvazia a da quantidade de víveres e munições compradas. Combalir a tropa é dar um tiro no próprio pé.
-- Não para a soberba. Moreira Cesar subestimou a força dos sertanejos, ávido em obter a vitória e se apresentar como um dos homens fortes no futuro governo. Agora é a vez de Arthur Oscar tentar o feito.
-- Arrisca-se com essas declarações.
-- Não pode haver desconfiança com relação aos motivos da guerra que se trava nem com relação às intenções do general que a comanda.
A frase soou como uma bofetada em Herculano.
-- O que espera de mim?
-- Provas. Preciso saber quanto Arthur Oscar ganhou de verba.
-- Comprovará apenas malversação de fundos, se tanto, ou outro erro de comando, não a suspeita da conspiração.
-- Mas a notícia abalará a reputação e atrapalhará o golpe.
Não tardou para Herculano informar ao jornalista o valor da verba. Os olhos de Benício brilharam ao saber que o montante era três vezes maior que o recebido por Savaget, comandante da brigada do seu informante.
-- Tanto dinheiro e um carregamento inferior ao de vocês! Arthur Oscar que preste contas à sociedade porque vou denunciá-lo.
Jamais, como nesses dias à espera da ordem do comando-geral para avançar, Herculano carregou a certeza do menosprezo à vida alheia que determinados homens possuíam. A suspeita da operação militar a serviço do golpe transformou-se em verdade e, como o irmão siamês do Exército, suportou a pressão dessa dependência engajado nos exercícios praticados de sol a sol para adquirir destreza em correr pelo chão irregular do sertão, para rastejar no solo espinhoso da caatinga, para pular e sair dos barrocais da região, para sobreviver à criminosa guerra e credenciar-se com seu mérito a um lugar na revolução que um dia adviria de ocorrer no país.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


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