sexta-feira, 20 de março de 2015

Capítulo Dezenove

EM FAVELA


A mensagem do comando-geral para avançar só chegou em 26 de junho, com a tropa em deslocamento. Dias antes, o general Savaget levantara acampamento, pressionado pelas condições de insalubridade que a permanência no local criava, e comandara o primeiro ataque vitorioso durante a travessia das serras de Cocorobó. Porém se ferira e a tomada do território adiante se deu sob o comando do coronel Telles.
Após o recebimento da retardatária ordem, novas horas transcorreram-se em ataques vencedores ao longo da passagem pelos morros de Macambira que elevaram o número de mortos para oitenta num total de trezentas e vinte sete baixas.
O poente já avermelhava o céu quando pisaram as cercanias do arraial e ouviram os canhões de Arthur Oscar. Herculano e Benício se entreolharam, com o entendimento comum de que o comandante-geral iniciara o ataque para tentar derrotar sozinho o adversário e concretizar seus interesses de glória. Confirmaram seus entendimentos ao saber que o bombardeio a Canudos começara de manhã, e, para os soldados pasmados com a precipitação bélica, repetiram a justificativa de Savaget que um motivo de força maior ainda desconhecido explicava o ocorrido. Era o possível a ser feito para fortalecer o moral abalado com o risco de o ataque não combinado vir a comprometer a vitória de táticas bem planejadas e executadas até ali com maestria pelo agrupamento.
Entraram em ofensiva no raiar do dia e foram silenciados pelo pedido de socorro de Arthur Oscar, sitiado em um morro chamado Favela. Depois de análises entre mandar recursos ou unir-se a outra tropa, o ferido Savaget decidiu pela união. Durante o comunicado da decisão, Herculano viu a troca de olhares ariscos e, depois, homens sussurrando. Percebeu desaprovações e receou o vindouro de um deslocamento feito sob a força da disciplina e não da confiança no general. Mas logo a questão se dissipou em seus pensamentos, tomado pela prontidão em revidar o ataque inimigo.
Com descargas enfurecidas ao longo do dia, impuseram a derrota aos adversários e liberaram o caminho até os companheiros. Galgaram os recostos de Favela e um cenário desolador se descortinou. Pelo chão, estiravam-se seiscentas baixas entre mortos e feridos. Ao luar os mais resistentes ainda se ocupavam de enterrar mortos, socorrer feridos, alimentar famintos, reconstruir trincheiras, enquanto o Estado-maior das duas brigadas tentava convencer Arthur Oscar de acampar em outro local com acesso à estrada para obter alimentos, água e munições.
-- Não sou homem de arredar pé de posição conquistada. Além do mais, Monte Santo mandará em breve um comboio, disse o inflexível comandante-geral.
O medo da derrota por inanição encorajou as altas patentes a se indispor com a relutância do superior. Pressionado, Arthur Oscar autorizou o envio de um piquete para acelerar a chegada do reforço e protegê-lo do risco de interceptação pelos inimigos.
Herculano foi escalado para a missão e partiu com outros oficiais. Encontraram o quartel-mestre de Monte Santo desorganizado e desprovido de víveres. Apenas a seção do telégrafo funcionava. Pediram reforços. Quando retornaram com o carregamento, em 13 de julho, Favela vivia a penúria física e moral. Durante os últimos dias, somente os enfermos haviam recebido rações diárias; os sãos se alimentavam com o obtido em caçadas e incursões às roças do entorno. Instalou-se, no acampamento, um comércio oportunista. A falta de solidariedade proliferou como erva daninha. Isolado na sua tenda, Arthur Oscar ignorava a situação da tropa, aferrado no seu pernicioso comando.
-- A desdita não me afrouxa o garrão!
Por fonte não identificada, o retorno à Favela trouxe também notícias dos telegramas de Benício. O comandante-geral chamou o jornalista.
-- Vossos telegramas tiveram mau efeito na Capital; o que andas a falar?
-- Das lutas e do cerco de fome e de jagunços em que nos metemos aqui.
-- Parece que a zona de combate não é o local certo para o senhor.
-- Queira Vossa Excelência me desculpar, mas não invento nem aumento o que vejo e, se não for para dar notícia ao jornal, o que devo fazer?
-- Partir porque não posso mais zelar pela vossa segurança. Assim, por apreço a vossa vida, deixe o acampamento – e sem voltas, dessa vez.
Logo depois, o jornalista se despedia de Herculano.
-- Melhor eu dar o fora antes que uma bala não sertaneja atinja meus miolos.
-- Com tudo o que viu, é mais útil no Rio do que aqui.
-- Espero que sim. Outra coisa: houve consultas de uma deserção em grupo durante a sua ausência. Tudo à boca miúda e vacilante.
Enquanto ouvia Benício relatar a consulta, Herculano pensava nas consequências da debandada para a reputação do Exército e na operacionalização da iniciativa. Era impossível deixar para trás a artilharia para aliviar o peso durante a fuga e impraticável remover enfermos sem retardar a marcha nem ser alvo fácil do inimigo. Não precisou objetar a ideia, pois o jornalista fez a mesma análise e contou que os consultantes não estavam mais no acampamento: um sumira após dizer que iria procurar comida e outro fora alvejado na véspera talvez por alguém da tropa.
-- Temos de trocar o comando, é a única solução, concluiu Herculano.
-- Há espaço para isso. Savaget está prostrado e há tensão no seu Estado-maior. Sinal que não compactuam com a loucura de Arthur Oscar.
Benício se foi e Arthur Oscar falou a tropa sobre o ataque próximo. Durante a exposição, Herculano mirou o coronel Telles, responsável pelas táticas vitoriosas da sua brigada. Vislumbrou no coronel o oficial apto a destituir o extrapolado comandante.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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