domingo, 22 de março de 2015

Capítulo Vinte

CAMINHO SEM VOLTA

Na alta da madrugada de 18 de julho, soldados a pé, seguidos por outros a cavalo, começaram a descer Favela. Herculano compunha a leva montada que, como manchas escuras, moviam-se pelos declives do morro, deixando para trás os feridos e a coluna defensiva, comandada pelo combalido Savaget. A tensão os mantinha em alerta e o coração disparava ao menor ruído de pedras roladas ou do resfolegar dos cavalos.
A alvorada chegou abandonada pelas aves. Quieta iluminou o solo revolto por outeiros, que, intercalados por planícies breves, circundavam Canudos. A caatinga se mostrou amarelada pelo estio e serpenteada pelo rio Vaza-Barris que, em água rasa, dirigia-se para o alvo do combate. Logo os soldados avistaram os primeiros casebres desprendidos do aglomerado do arraial, de onde se assomavam as torres de duas igrejas.
Veio o sol e depois o fogo da artilharia inimiga disparado dos recostos e cumes dos montes. Em trotes livres para a morte ou para a sobrevivência, a cavalaria revidou o ataque. Herculano trotou em direção ao coronel Telles a fim de criar a cumplicidade necessária ao pleito almejado de lhe propor a disposição do comando-geral da brigada. Mas o destino concorreu contra, e o coronel tombou alvejado. Herculano apeou para socorrê-lo – a montaria fugiu assustada com a zuada da batalha – e só lhe restou correr com o superior vergado no ombro. Atravessou em meio dos tiros, dos gritos de dor e das vivas dadas ora à República, ora ao Bom Jesus. Alcançou enfermeiros, deitou Telles na padiola e retornou ao combate, atirando, rolando, rastejando até alcançar as bordas de Canudos, onde pulou numa trincheira e de lá continuou a tirotear em alvos à janela, ao telhado, à esquina de vielas, onde os inimigos os detinham. Sem tréguas, o tiroteio se desenrolou até o poente quando o silêncio se fez. Ouviram-se então os sinos das igrejas, depois o canto da Ave-Maria e, em seguida, o murmúrio da ladainha entoada pelos oponentes, que ressoou pelas terras onduladas de céu avermelhado. A emoção tomou conta de Herculano, com o olhar na arena, onde cerca de oitocentos companheiros estiravam-se entre mortos e agonizantes.
Os sertanejos inovaram as regras do combate e recomeçaram o tiroteio à luz evanescente do dia. Palmo a palmo, tomaram o espaço perdido horas atrás para as baionetas legais e, por horas sucessivas, fustigaram os soldados entrincheirados, sem condições de remover os tombados. Canudos parecia insuperável e a noite, infindável.

Canhões desceram Favela no amanhecer. O bombardeio forçou o retrocesso dos oponentes e deu cobertura para a retirada dos mortos e feridos. A operação se prolongou abastecida pelas baixas de novos e consecutivos ataques. Minguava a força militar detida no quintal dos canudenses, enquanto superlotava os feridos no morro, em níveis de insalubridade alarmantes. A permanência em Favela tornou-se insustentável e a remoção dos combalidos, inadiável.
Encurralado pelas consequências de seus erros, Arthur Oscar autorizou a remoção da primeira leva de baixas e pediu reforço ao governo. Herculano acatou a ordem de conduzir o grupo, sentindo um misto de alívio em sair da linha de combate e de menosprezo a si mesmo por não ter coragem de meter uma bala na cara do comandante.  Com centenas de feridos, partiu sem carroças e cavalos para tanta gente.
Ao longo do deslocamento vagaroso e dolorido, o calor crestava, enquanto a água e a comida rareavam. Fome, sede, putrefação e delírios incorporaram a marcha. Muito iam ficando pelo caminho, sem forças para prosseguir e sem braços que os apoiassem.
A obstinação em chegar anestesiava Herculano às voltas com o sofrimento ao redor e com as próprias tentativas fracassadas de enviar mensageiros para providenciar ajuda. Houve então o encontro providencial com a expedição enviada pelo governo para conhecer a verdadeira situação do combate. Comida e carroças foram partilhadas, e a marcha seguiu seu torturante curso.
Dois dias de agonia transcorreram antes de Herculano penetrar Monte Santo com seus mortos vivos. Por conta própria, não retornou para a área de combate. Telegrafou a Benício – “precariedade no QG; desespero no campo de batalha” – e se integrou aos esforços para cuidar dos enfermos e despachar os mais fortes para um vilarejo, onde tomaram o trem para Salvador. Nessa leva seguiram Savaget e Telles levando a sua esperança de que os relatos dos oficiais ajudassem a pôr fim na maldita guerra.

O possível esperado por Herculano se concretizou das notícias desembarcadas na Capital Federal. Prudente de Morais ordenou a intervenção pessoal do Ministro da Guerra em Monte Santo e para lá se dirigiu o marechal. Sua presença mudou o cenário local. Duas mil barracas ocuparam o vilarejo, cirurgiões e estudantes de medicina foram recrutados e assumiram posições no hospital, e serviços de abastecimento implantados.
A guerra entrou em nova fase. Cinco mil homens reforçaram as colunas, enquanto barreiras fecharam os acessos para Canudos. Submetidos a regime de privações, mulheres e crianças do arraial se renderam e rebeldes foram capturados em número expressivo. Arthur Oscar indagou ao ministro da Guerra sobre o destino dos rendidos.
-- Nas áreas da retaguarda não pode haver jagunços, respondeu o marechal.
Logo depois retornou à Capital Federal.
Casos de estupros e de degolas de prisioneiros vieram à tona. Médicos se indignaram e protestaram. Arthur Oscar declarou que os indignados tomassem tento porque estavam em uma praça de guerra. A ferocidade migrou da escuridão da noite para a luz do dia. A violência vingou mortes e dores, liberou selvagerias e criou uma coesão criminosa direcionada ao extermínio dos sertanejos.
Ao cáustico brilho solar ou em tépida claridade lunar, Herculano purgava em tormento. Se a sensatez lhe mostrava sua impotência para conter a crueldade em curso, se o advertia para se proteger da fúria assassina contra os prisioneiros, outra voz interna lhe figurava sua cumplicidade com essas involuções. A imagem da barbárie despojada das vestes leves da civilização se assomou, pronta para degolar a sua fé na lógica do ideal. Como um vulto à noite, uma sombra ao dia, que postergava a navalhada mortal, o espectro se satisfazia em estuprar seu sentido de hombridade, em zombar da sua pequenez, em escarnecer da sua pretensão de influir na edificação de uma nova ordem material. Herculano sentia não possuir a mesma nobreza de suas crenças, de não ser tão íntegro quanto aspirava, de ser um covarde que se agarrava ao ideal republicano numa tentativa desesperada para valorar a própria existência e corresponder em dignidade aos milhares de anos despendidos pelo homo sapiens para se firmar com as potencialidades da sua inteligência esclarecida pelas ciências e pelas artes.
Dormir tornou-se um problema. O ar quente e estagnado da tenda o incomodava, e o sono quase sempre era agitado e interrompido pela sensação de opressão. Acordado em assombro, levantava-se e, na fresca da madrugada, se quedava buscando apaziguar suas emoções. Durante uma dessas saídas noturnas, aproximou-se de si uma referência cara e há alguns dias em deslocamentos pela região como correspondente de guerra. Era Euclides, acossado pelos mesmos fantasmas. Os tormentos comuns dissolveram divergências passadas e intermediaram o resgate da amizade.
-- O que nos espera nas bandas do futuro?
Herculano respondeu com ar descrente.
-- Não sei.
-- Pesa-me tudo. A violência e o meu próprio silêncio. Mas como denunciar a verdade absoluta desse extermínio?
-- Esquece isso. Somos a impotência do ideal e o abalo da fé na evolução.
Euclides atentou para a amargura de Herculano.
-- A campanha já está no fim. Por que não pede uma licença?
-- Não quero e não devo. Escolhi o Exército.
-- Entendo. Eu se pudesse viveria só de escrita, mas não tenho essa opção.
-- O livre-arbítrio resume-se na capacidade de perseverar.
-- Nossos patrícios que o digam. Em vez de fugir enquanto havia estrada aberta para a salvação, preferiram permanecer.
-- Alguns caminhos não têm volta. É o caso do tomado pelos daqui. Resistirão até o completo esgotamento. 
E resistiram. A seis de outubro de 1897, ao som dos últimos gritos de dor, o fogo destruiu o que não fora incendiado por chamas antecessoras. Findava assim quase um ano de luta, com um saldo de cerca de cinco mil soldados mortos para um desconhecido número de baixas sertanejas de uma população estimada em vinte e cinco mil pessoas.
  
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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