A PERSPICÁCIA
É de
noite. Catarina toca piano para Theodoro, que lê um jornal.
-- Ora
só!
-- O
quê, meu adorado?
--
Cruzada contra a hidra do meretrício.
O
comentário esperado excita Catarina um pouco mais.
-- Um
artigo?
--
Não. Uma carta publicada na seção A
Pedidos.
-- O
que diz?
--
Veja você mesma.
Levanta-se
e entrega o jornal. Catarina lê como se fosse uma grande novidade.
-- Por
que isso agora?
-- É o
que me pergunto.
--
Houve algum incidente que suscitasse essa manifestação?
-- Bem
ao contrário. O prefeito está comprometido com a regeneração moral da cidade e
conta com o empenho do Chefe de polícia.
--
Parece que os autores querem uma ação mais célere.
-- Ou a
sua autora, quiçá mais de uma.
Entre
temerosa e envaidecida, Catarina aprecia a intuição do marido.
-- De
onde tirou essa ideia?
-- Uma
hipótese, entre outras. É plausível supor que uma esposa chateada com as
extravagâncias do marido tenha escrito a carta.
O
prazer de superar a perspicácia de Theodoro desafia Catarina.
-- Bobinho! O bom-tom não recomenda que uma
senhora de bem se exponha, ainda mais com um assunto polêmico como esse.
--
Razão para o uso de um pseudônimo.
-- Pois
eu lhe afirmo: o autor desta carta é um homem.
--
Como pode ter tanta certeza?
-- Ora
o texto não transmite emoção.
--
Como se a racionalidade não fosse possível às mulheres.
-- É
um raro, meu querido. Só você para valorizar nossos predicados...
-- E
suspeitar da Ordem da Estrela.
--
Prima pelo poder investigativo, mas não acha que é demasiado?
-- A
Ordem se preocupa com os bons costumes.
--
Decerto. Mas nossa modernidade restringe-se aos debates internos e somos muito
vaidosas para abrir mão do nome da nossa irmandade. Além do mais, não nos
imiscuímos em assuntos, como direi, historicamente tão masculinos.
--
Mudanças ocorrem.
--
Parece que nem tanto a julgar por essa campanha.
--
Refiro-me às mudanças no modo de ser da Ordem.
-- Ah,
mas só com a consulta a todas nós, até mesmo as ausentes. E não recebi
correspondência alguma nem fui procurada por ninguém, a menos que a regra tenha
sido aviltada. Amanhã mesmo irei averiguar.
--
Desnecessário. Só queria ouvir sua opinião. Descobrirei quem é o mandante.
Catarina
aposta que nenhum jornal revele a identidade do pagante, uma vez que o
anonimato é o fator de sucesso da seção A
Pedido dos Leitores. Mas como tudo é possível em se tratando do marido, pensa
em ampliar os mimos para silenciar melhor seus servidores e demonstra interesse
na investigação.
-- Tem
como?
--
Alguém pagou a publicação.
--
Antes assim. Logo saberá quem são esses Cruzados. Agora esqueça as
preocupações; tocarei uma música suave para você descansar.
--
Fica para outra ocasião. Vou me recolher, tenho um dia cheio amanhã.
-- Ah,
então vá mesmo, meu querido, e descanse.
-- Não
vem?
--
Daqui a pouco. O neném adora ouvir noturnos: fica quietinho, quietinho.
-- Bom
gosto. Mas não se demore.
-- Não
me demorarei.
Receio
e satisfação vibram em Catarina, que mira o teclado do piano, com energia
para tocar uma marcha triunfal. Enxerga nos comentários do
marido os primeiros indícios de vitória do seu plano e qualifica como perfeitas
as respostas que lhe deu. A convicção de que deve defender seu casamento com as
armas que possui sobrepuja o medo de ser descoberta. Começa a tocar. De
repente, os dedos correm ao longo das teclas e o som forte sela a confiança de
vencer Ninon de Valoir.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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