sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Capítulo Sessenta e Quatro

A PERSPICÁCIA


É de noite. Catarina toca piano para Theodoro, que lê um jornal.
-- Ora só!
-- O quê, meu adorado?
-- Cruzada contra a hidra do meretrício.
O comentário esperado excita Catarina um pouco mais.
-- Um artigo?
-- Não. Uma carta publicada na seção A Pedidos.
-- O que diz?
-- Veja você mesma.
Levanta-se e entrega o jornal. Catarina lê como se fosse uma grande novidade.
-- Por que isso agora?
-- É o que me pergunto.
-- Houve algum incidente que suscitasse essa manifestação?
-- Bem ao contrário. O prefeito está comprometido com a regeneração moral da cidade e conta com o empenho do Chefe de polícia.
-- Parece que os autores querem uma ação mais célere.
-- Ou a sua autora, quiçá mais de uma.
Entre temerosa e envaidecida, Catarina aprecia a intuição do marido.
-- De onde tirou essa ideia?
-- Uma hipótese, entre outras. É plausível supor que uma esposa chateada com as extravagâncias do marido tenha escrito a carta.
O prazer de superar a perspicácia de Theodoro desafia Catarina.
 -- Bobinho! O bom-tom não recomenda que uma senhora de bem se exponha, ainda mais com um assunto polêmico como esse.
-- Razão para o uso de um pseudônimo.
-- Pois eu lhe afirmo: o autor desta carta é um homem.
-- Como pode ter tanta certeza?
-- Ora o texto não transmite emoção.
-- Como se a racionalidade não fosse possível às mulheres.
-- É um raro, meu querido. Só você para valorizar nossos predicados...
-- E suspeitar da Ordem da Estrela.
-- Prima pelo poder investigativo, mas não acha que é demasiado?
-- A Ordem se preocupa com os bons costumes.
-- Decerto. Mas nossa modernidade restringe-se aos debates internos e somos muito vaidosas para abrir mão do nome da nossa irmandade. Além do mais, não nos imiscuímos em assuntos, como direi, historicamente tão masculinos.
-- Mudanças ocorrem.
-- Parece que nem tanto a julgar por essa campanha.
-- Refiro-me às mudanças no modo de ser da Ordem.
-- Ah, mas só com a consulta a todas nós, até mesmo as ausentes. E não recebi correspondência alguma nem fui procurada por ninguém, a menos que a regra tenha sido aviltada. Amanhã mesmo irei averiguar.
-- Desnecessário. Só queria ouvir sua opinião. Descobrirei quem é o mandante.
Catarina aposta que nenhum jornal revele a identidade do pagante, uma vez que o anonimato é o fator de sucesso da seção A Pedido dos Leitores. Mas como tudo é possível em se tratando do marido, pensa em ampliar os mimos para silenciar melhor seus servidores e demonstra interesse na investigação.
-- Tem como?
-- Alguém pagou a publicação.
-- Antes assim. Logo saberá quem são esses Cruzados. Agora esqueça as preocupações; tocarei uma música suave para você descansar.
-- Fica para outra ocasião. Vou me recolher, tenho um dia cheio amanhã.
-- Ah, então vá mesmo, meu querido, e descanse.
-- Não vem?
-- Daqui a pouco. O neném adora ouvir noturnos: fica quietinho, quietinho.
-- Bom gosto. Mas não se demore.
-- Não me demorarei.
Receio e satisfação vibram em Catarina, que mira o teclado do piano, com energia para tocar uma marcha triunfal. Enxerga nos comentários do marido os primeiros indícios de vitória do seu plano e qualifica como perfeitas as respostas que lhe deu. A convicção de que deve defender seu casamento com as armas que possui sobrepuja o medo de ser descoberta. Começa a tocar. De repente, os dedos correm ao longo das teclas e o som forte sela a confiança de vencer Ninon de Valoir.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


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