terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Capítulo Cinquenta e Oito

AO LONGO DO RIO NEGRO 


20.06.1904.
Embarquei hoje no Vapor Solimões com destino ao alto rio Negro. Aumentei minha bagagem. Em um baú, levo tabaco, miçangas coloridas, anzóis, facas e pequenos espelhos. Em outro, seguem peças de algodão estampado em cores vivas, apetrechos de costura e ainda barras de sabão. São itens apreciados pelos índios e favorecem a aproximação com eles.
Os passageiros são formados em grande parte por estrangeiros, que retornam para a Colômbia ou Venezuela; outros são brasileiros, entre eles funcionários do governo, que desembarcarão ao longo do percurso. Algumas esposas acompanham os maridos. E há também índios, a maioria em serviço no vapor.   
Deixei minhas coisas na cabine e abri minha rede no espaço do segundo andar. O céu está estrelado. Tenho tido dificuldade para dormir. Lembranças surgem no silêncio da noite. E fico a divagar se a geratriz das minhas desilusões está bem e em paz consigo mesma. Outras vezes fecho os olhos e vejo a preguiça morta. Nunca gostei de caçadas, nem entendo como alguém pode apreciar bicho empalhado. No olhar do animal, reconheço o terror fixado do seu encontro com a morte.

22.06.1904
Ao amanhecer acordei com a visão das pequenas casas de Moura alinhadas à margem do rio. Meu vizinho de rede, o senhor Ricardo Cluny, comentou que mais ao norte, já nas terras do município de Boa Vista, há índios bravos da tribo Uamari. Rondam as margens do rio Negro, por época das secas, para pegar tartaruga. Recentemente mantiveram Moura sitiada por vários dias, até a chegada de soldados de Manaus. A população refugiou-se numa ilha. Outros conflitos da tribo são com os exploradores de ouro da região e há contendas também no campo da diplomacia internacional. O Brasil disputa com a Inglaterra parte desse território.  Já sobre os ataques dos exploradores de seringas aos indígenas, Cluny se abstém de falar. Mas deixa escapar a impossibilidade de garantir a ordem e a lei nos rincões da Amazônia.
O senhor Cluny é superintendente de São Gabriel, vila sede do governo no alto do rio Negro. Ao se inteirar dos meus planos de viagem, me deu notícias de Grünberg. Juntos fizeram este percurso no ano passado e, há um mês, o etnólogo o visitou a caminho do Curicuriary, com planos de seguir depois para o Tiquiê. Para encontrá-lo, aconselhou-me ir direto pelo rio Uaupês e se prontificou a me ajudar na organização da viagem, em São Gabriel. É o que farei.

24.06.1904
Conheci ontem as marcas coletivas da malária e a desolação da antiga capital da Amazonas. Barcellos perdeu essa condição nos fins do século XVIII e desde então muitos dos seus habitantes. É o bucólico abandonado e a fé a se personificar em uma singela igreja de teto triangular de onde se ergue uma alta torre. Em frente há um pátio, com escadas que mergulham as águas. Os seringais da região exportam para cá o maior número de combalidos pelas febres tropicais de onde fazem pouso temporário, ou para sempre, no cemitério local. A doença se projeta dos olhos cavos e rostos magros. Um cenário humano triste e entristecedor.

25.06.1904
Estamos parados na vila de Santa Izabel, um entreposto comercial, onde um português parece ser o senhor local. Um batelão aguardava por nós. Pilotada por indígenas, acompanhará o Solimões, com cargas para as vilas do alto rio Negro.

29.06.1904
Logo acima de Santa Isabel, enfrentamos rebojos à margem de rochedos. Ondeantes e espumantes, as águas rugiam. A sensação era de que íamos ser lançados sobre as rochas pela correnteza. O batelão chegava a se descolar das águas. Por duas horas, o Solimões tentou atravessar a fúria do rio, mas foi vencido e recuou. Com mais vapor, vencemos o sorvedouro e alcançamos águas mais calmas.
Chegamos de tarde na parada final do Solimões. Desse ponto em diante, apenas embarcações menores sobem o rio ou os batelões. Seguiremos em um. O local é um entreposto comercial às margens do sítio Trindade. Possui ponte de desembarque e casa de armazenagem. Muitos índios estavam no local. Alguns traziam ou esperavam carga, outros vendiam caças. São homens de compleição forte, porém baixos. Também vi um grupo recém-trazido do rio Uaupês para trabalhar no sítio Trindade. Tinham um olhar admirado e carregavam em cestos seus pertences, como um diadema adornado com penas coloridas e outras brancas que pendiam em calda da parte detrás. Um jovem vestiu o adorno e eu o fotografei. Retribuí com dinheiro e ele pediu cigarro para Cluny. Tabaco e cachaça são um pedido constante dos nativos nas paradas.

30.06.1904
Viajamos o dia inteiro em águas aceleradas. Paramos para pernoitar em uma margem inundada. Grossas cordas feitas de piaçaba prendem os batelões às árvores. Depois de tantos dias de convivência, o silêncio pesa e é quebrado neste instante pela triste melodia cantada por um espanhol ao som do seu violão. Uma mulher acocorada entre sacos tem seus filhos ao redor de si. Os pequenos se revezam no colo dela. Às vezes um piolho é achado; só de ver coço a cabeça. Olho para o céu estrelado e sinto falta de uma estrela inesquecível.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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