sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Capítulo Trinta e Oito

NA TRAVESSIA FINAL DE BOVARY


Páscoa só retorna ao livro no dia seguinte e ainda assim com certo distanciamento. Mas logo um alento trêmulo a invade suscitado pela visita de Bovary ao tesoureiro municipal para quem confidencia seu infortúnio. A expressão até então deleitada do homem anuvia-se ao saber das dívidas, depois se franze ao ouvir o pedido pecuniário e por fim se ruboriza indignado quando a solicitante oferece-se em troca do socorro.
-- Senhora! Como pôde pensar nisso?
Trôpega de pasmo com o mau-êxito da proposta que defendeu, Páscoa segue Emma, que se apega a sua última esperança de salvação: Rodolphe. Procura o ex-amante, que diz não ter o dinheiro solicitado.
-- Não o tens! Eu deveria ter-me poupado a esta última vergonha. Nunca me amaste! Não vales mais do que os outros! - exclama e, desorientada, parte. 
Angustiada, Páscoa afoga-se na travessia final de Bovary.
O chão lhe parece como imensas vagas escuras que se arrebentam. Ideias e reminiscências brotam de sua mente e lhe escapam como os riscados brilhantes de um fogo de artifício. Teme estar louca; consegue se dominar, de uma maneira confusa, em que não associa a necessidade de dinheiro à causa do seu horrível estado. Sofre apenas por causa do amor. Sente que a alma a abandona a essa recordação, como os feridos, agonizando, sentem a vida esvair-se pelos ferimentos a sangrar.
Cai a noite. Voam gralhas. E Bovary reconhece então as luzes das casas que resplandecem, de longe, no nevoeiro. Nesse momento, percebe o abismo em que se encontra. O peito arfa como se fosse despedaçar. Depois, num arrojo de heroísmo, em que quase se sente alegre, desce a encosta a correr, atravessa a prancha das vacas, depois a alameda, mais na frente o mercado e chega à loja do farmacêutico. Convence o ajudante a deixá-la entrar. Lá dentro pega um frasco e se envenena. Retorna para a casa, escreve uma carta de despedida ao marido e se entrega à descoberta da morte escolhida. Em uma derradeira fantasia, imagina que morrer será uma experiência insignificante, na qual adormecerá e tudo acabará.
Ledo engano! Descobre Bovary, corroída pela dor e pela agonia. No entanto, já não odeia mais nada, nem ninguém; sabe que em breve a sua natureza, que a torturou com desejos de posses e gozos insaciáveis, se silenciará para sempre. Subitamente ouve a canção que chega da calçada: -- Quantas vezes um belo dia de calor faz sonhar as meninas com amor. Para apanhar as espigas, que os moços foram ceifar, uma delas andou no campo a cantar. Mas tanto o vento soprou que a saia lhe levantou!
O cego! Bovary exclama, julgando ver o rosto horrendo do miserável, já nas trevas eternas. Gargalha freneticamente. Até que um espasmo irrompe e, com a imagem que tantas vezes repugnância lhe causou, deixa de existir.
Páscoa fecha o livro, enlutada. A natureza venceu. A ordem social foi legitimada. Vira-se para o relógio à parede. Se quiser chegar ao Jardim Botânico na hora marcada, deve sair já. Retira o bilhete de Grego de dentro do romance e dirige-se para a biblioteca, onde para diante da República.
Quitéria ronda o ambiente, intrigada com o atrasado da saída que não deseja. Observa Páscoa. Nada fala, mas ora: Obá, está nas tuas mãos! Volta para a cozinha, para a massa de pão, e, logo mais, esguelha os olhos para Páscoa, que passa ao seu lado e para diante do fogão, onde entrega o bilhete de Grego às labaredas. Tomou uma decisão. Separar-se de Herculano antes de se entregar à nova paixão. Os ponteiros do relógio cobrem a hora do encontro. O carrilhão geme o tempo que se foi, enquanto Bovary repousa sob a concha, no fundo da cesta de bordados, que está sempre disposta sobre o tapete, ao pé da quina do sofá, na sala de estar.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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