domingo, 14 de dezembro de 2014

Capítulo Vinte e Oito

NEM SOB A PROTEÇÃO DE IANSÃ


Durante o jantar, Páscoa se esforça para relatar a ida à cidade, em tom natural, sob o prisma dos interesses do marido. Fala sobre o trânsito lento, as ruas abertas pelas obras e os passeios tomados pelos entulhos das demolições. Herculano critica a quantia paga pelo governo aos imóveis desapropriados.
-- Muito aquém do que valem! Contratei um advogado para discutir na justiça o valor da indenização dos nossos.
Páscoa se interessa pelo assunto, em saber o que ainda dispõe da herança da qual faziam parte os imóveis desapropriados na Avenida Central. Mas o tema é uma seara delicada diante dos brios de Herculano. Atém-se ao exposto pelo marido.
-- São boas as chances?
-- Ainda em estudo. Comprou tudo o que precisava para Sofia?
-- Sim. Terá um belo enxoval, comenta, sem ignorar a dificuldade de Herculano para inteirá-la das questões que também dizem respeito a ela.
Pousados ora no pai, ora na mãe, os olhos de Sofia acompanham satisfeitos o desenrolar da conversa tranquila.
Ao final do jantar, todos se levantam para o café, sempre servido na sala de estar. O inesperado se apresenta nessa hora sossegada: Herculano estende a Páscoa filipetas, nas quais ela reconhece o minúsculo desenho de um teatro.
-- O que é isso?
-- Veja você mesma.
-- Ingressos para o Theatro Lyrico!
-- No sábado, iremos assistir à estreia de uma renomada companhia internacional.
-- Eu também vou?
-- Não. Ópera é para adultos, diz Herculano e desvia o olhar da filha para a expressão apreensiva da esposa. -- Por que se preocupa? Não lhe agrada o canto lírico?
-- Muito. Mas será que não é cedo para eu sair? Imagino que haverá tanta gente...
-- Parece-me bem disposta, a julgar o que fez hoje. Espero que continue assim. A ópera é meu presente de aniversário.
Páscoa está pasmada com a súbita demonstração de afeto do marido, sempre tão árido e desatento a datas. Assombra-a também essa circunstância inesperada, que pode pôr Herculano cara a cara com Grego.
-- Obrigada. Estou sem palavras.
-- Se achar necessário, compre um belo vestido. Esteja à altura da ocasião.
-- Verei a conveniência.
Sofia também quer presentear a mãe. Ao recolher-se em seu quarto, abre uma caixa por onde escapam conchinhas. Confiante, a pequena sorri.
Já na cozinha, um resistente diálogo acontece em voz baixa ao lado do fogão de lenha. Quitéria tenta se afastar, mas Páscoa se interpõe e lhe breca a passagem.
-- Quer que Herculano o veja?
-- Nem sob a proteção de Iansã!
-- Pois então vá até lá e avise Grego que estaremos na estreia.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


Nenhum comentário:

Postar um comentário