RUMO A BOTAFOGO
A
despedida do arraial de Copacabana tremula nos olhos da mãe e da filha, que
partem com o chefe da família no coche conduzido pelo empregado. A ama vem
atrás numa charrete de aluguel, abarrotada de cestas e baús. O pequeno comboio
sobe a ladeira, o coche range as saudades e trepida em Páscoa a raiva da saída
abrupta do arraial. Parte sem deixar uma carta de despedida para Grego. Sem
agradecer todo o bem que ele lhe fez. Aconchega ao colo a sacola que leva a
concha dentro. No alto do morro, após os arcos do Vigia, o relutante adeus aos
mares de cá se mistura ao tímido aceno às águas do lado de lá. Calma e
cintilante exibe-se a baía da Guanabara. Herculano chama a atenção para as
obras de modernização da cidade que alcançam a orla distante. Mãe e filha
olham. Nuvens de trabalhadores atravessam a luminosidade da praia.
--
O mar será recuado para dar lugar a uma avenida.
Páscoa
não entende como é possível recuar tamanha força. Sente como se ela própria
estivesse sendo comprimida para os confins de si mesma.
--
Mas será necessário? Pobre mar!
Herculano
admira a compaixão da mulher, a própria crença na natureza feminina de inspirar
o homem para o bem.
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Não se aflige nem se ocupe com tais divagações. É apenas um aterro. E há um
especialista a comandar as obras.
A
resposta a irrita. Olhe, mas não veja.
Ouça, mas não pense. Sinta, mas não reaja. Deseja que a natureza se insurja
contra os homens e lhes cobre o que for roubado.
O
marido prossegue:
--
O problema não é a reurbanização em si. O inadmissível são os abusos de poder
que a acompanham e avalizados por um parlamento opressor. Mas isso tudo está
com os dias contados. Ninguém aguenta mais tanta arbitrariedade.
O
ferrão da vingança pela partida imposta encontra terreno para picar.
--
O que está aí não foi eleito no estrito da ordem?
--
Não é apropriado falar do que se desconhece.
A
advertência é insuficiente para calar a raiva da mulher.
--
Seja como for, percebo que por detrás do governo existe uma vontade, que foi
forte o suficiente para elegê-lo, apesar de ser contrária ao que você pensa e
quer.
O
rubor da tensão insurrecta é observado. Há a intervenção.
--
É meu dever analisar este seu acalorado e não menos leviano exercício de
expressão. Vejamos: vontades diferentes. Um quer isso, outro aquilo, que acha
ser justo e legítimo. Mas a recíproca também é verdadeira. Pois bem. Quem
decidirá o impasse? Quem equilibrará vontades com forças desiguais em uma
realidade de oportunidades também desiguais? Apenas o Estado, fundado na
inteligência esclarecida pelas ciências e acima de qualquer interesse
particularista. É disso que precisamos. De um governo eleito, sim, porém com
uma prática racional e ilibada. Não essa que aí está a serviço de uma minoria e
legitimada por um congresso alugado. Espero que tenha entendido os fatos e não
repita mais impropérios.
Cala-se,
ainda incomodado com a fala insubordinada. Sai
a prostração e volta o perrengue de sempre? Que lhe interessa o recuo do mar, o governo, a eleição? O que quer? O
que ganha em me desafiar? Não percebe que só tem a mim?
O
silêncio toma conta do coche que desce a ladeira. Sentada em frente dos pais,
Sofia deseja que não retomem a discussão. Da janela, Páscoa contempla a
paisagem invadida pelas saudades de Grego, do bem que ele lhe fez, da segurança
que experimentou ao seu lado. Apalpa a concha escondida na sacola e expõe o
rosto ao sol, que a aquece como nos breves dias iluminados.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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