domingo, 14 de dezembro de 2014

Capítulo Vinte e Três

RUMO A BOTAFOGO

A despedida do arraial de Copacabana tremula nos olhos da mãe e da filha, que partem com o chefe da família no coche conduzido pelo empregado. A ama vem atrás numa charrete de aluguel, abarrotada de cestas e baús. O pequeno comboio sobe a ladeira, o coche range as saudades e trepida em Páscoa a raiva da saída abrupta do arraial. Parte sem deixar uma carta de despedida para Grego. Sem agradecer todo o bem que ele lhe fez. Aconchega ao colo a sacola que leva a concha dentro. No alto do morro, após os arcos do Vigia, o relutante adeus aos mares de cá se mistura ao tímido aceno às águas do lado de lá. Calma e cintilante exibe-se a baía da Guanabara. Herculano chama a atenção para as obras de modernização da cidade que alcançam a orla distante. Mãe e filha olham. Nuvens de trabalhadores atravessam a luminosidade da praia.
-- O mar será recuado para dar lugar a uma avenida.
Páscoa não entende como é possível recuar tamanha força. Sente como se ela própria estivesse sendo comprimida para os confins de si mesma.
-- Mas será necessário? Pobre mar!
Herculano admira a compaixão da mulher, a própria crença na natureza feminina de inspirar o homem para o bem.
-- Não se aflige nem se ocupe com tais divagações. É apenas um aterro. E há um especialista a comandar as obras.
A resposta a irrita. Olhe, mas não veja. Ouça, mas não pense. Sinta, mas não reaja. Deseja que a natureza se insurja contra os homens e lhes cobre o que for roubado.
O marido prossegue:
-- O problema não é a reurbanização em si. O inadmissível são os abusos de poder que a acompanham e avalizados por um parlamento opressor. Mas isso tudo está com os dias contados. Ninguém aguenta mais tanta arbitrariedade. 
O ferrão da vingança pela partida imposta encontra terreno para picar.
-- O que está aí não foi eleito no estrito da ordem?
-- Não é apropriado falar do que se desconhece.
A advertência é insuficiente para calar a raiva da mulher.
-- Seja como for, percebo que por detrás do governo existe uma vontade, que foi forte o suficiente para elegê-lo, apesar de ser contrária ao que você pensa e quer.
O rubor da tensão insurrecta é observado. Há a intervenção.
-- É meu dever analisar este seu acalorado e não menos leviano exercício de expressão. Vejamos: vontades diferentes. Um quer isso, outro aquilo, que acha ser justo e legítimo. Mas a recíproca também é verdadeira. Pois bem. Quem decidirá o impasse? Quem equilibrará vontades com forças desiguais em uma realidade de oportunidades também desiguais? Apenas o Estado, fundado na inteligência esclarecida pelas ciências e acima de qualquer interesse particularista. É disso que precisamos. De um governo eleito, sim, porém com uma prática racional e ilibada. Não essa que aí está a serviço de uma minoria e legitimada por um congresso alugado. Espero que tenha entendido os fatos e não repita mais impropérios.
Cala-se, ainda incomodado com a fala insubordinada. Sai a prostração e volta o perrengue de sempre? Que lhe interessa o recuo do mar, o governo, a eleição? O que quer? O que ganha em me desafiar? Não percebe que só tem a mim?
O silêncio toma conta do coche que desce a ladeira. Sentada em frente dos pais, Sofia deseja que não retomem a discussão. Da janela, Páscoa contempla a paisagem invadida pelas saudades de Grego, do bem que ele lhe fez, da segurança que experimentou ao seu lado. Apalpa a concha escondida na sacola e expõe o rosto ao sol, que a aquece como nos breves dias iluminados.


Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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