terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Capítulo Cinquenta e Nove

DESTRUIÇÕES


Ao ultrapassar o portão do casarão, Páscoa vê Tião e Belizária que se esquivam em direção do fundo do jardim. Estranha a reação. Hesita em entrar. Tarde para recuar. Herculano aparece à porta principal, com a fisionomia tesa. O coração dela dispara e lhe ocorre que ele está bravo por não tê-la encontrado em casa.
O marido se aproxima, toma seu braço e a impulsiona a andar. Penetram o vestíbulo e passam ao lado de Quitéria desolada. Na sala de estar, Páscoa vê seu cesto de bordado aberto com os objetos jogados sobre o sofá. Suspeita das razões e de quem vasculhou a cesta: mas como pôde ter sabido de Grego? À biblioteca, é forçada a se sentar na cadeira em frente da escrivaninha, enquanto a descoberta da saída clandestina, as dúvidas de uma traição atiçam os demônios de Herculano. Quer uma confissão.
-- Onde estava?
Páscoa teme falar e mentir. Mantém-se em silêncio.
-- Pelo amor que tem a sua vida, diga onde estava?
Sem obter resposta, contorna a escrivaninha. Da gaveta, retira um revólver.
Páscoa tem certeza que alguém a denunciou ao marido e tenta se convencer de que a arma é apenas para amedrontá-la. Fecha as mãos nos braços da cadeira e com o olhar acompanha o deslocamento de Herculano em sua direção. Pelo cabelo, sua cabeça é puxada para trás e sua face se mantém sob o foco da expressão vidrada de ódio.
-- Quer levar para o inferno sua perdição?
Seus olhos aterrorizados esguelham-se ao máximo, atentos ao braço que se ergue, com a arma em punho. As pálpebras se fecham quando o metal frio e duro pressiona a têmpora. É o fim, pensa.
-- Ainda há tempo. Diga, onde estava?
O ódio embranquece o rosto de Herculano. As maçãs da face tremulam e o dedo aperta o gatilho. Um estalo seco soa. Páscoa percebe que nada aconteceu. Abre os olhos e vê a sordidez sobre si. Sente a ânsia subir à garganta, o sufoco, agita-se, Herculano a solta e ela vomita.
-- Confesse e terá uma pena mais leve, diz e a empurra para fora da biblioteca.
De novo, cruzam com Quitéria, que se desespera de vez com a feição alucinada de um e a palidez desgrenhada do outro. Segue os dois até a cozinha, onde param diante do fogão, sob o olhar aflito de Tião e Belizária. Um tacho de cobre está sobre o degrau do fogão, ao lado dos livros, da concha e do lençol. Quitéria suplica.
-- Tenha piedade, Capitão.
-- Tião leve sua mulher daqui e feche a porta.
Os empregados saem e se amontoam ao lado da janela.
Páscoa continua parada, cabeça abaixada, coração acelerado. Ouve a violência que destroça o romance Bovary e lança as páginas dentro do tacho de cobre. Não vê também o destino idêntico que se abate sobre Casa de Bonecas, até que as mãos furiosas erguem o seu rosto. Com um sorriso perverso, ele joga a enseada bordada dentro do tacho, verte um líquido sobre os pertences e ateia o fogo. -- Não, ela exclama ao som da combustão.
Herculano pega um martelo e anda ao redor da mulher, que olha para a concha solitária no avermelhado degrau do fogão.
-- Tenho todo o tempo do mundo. Você falará.
Tudo então se repete. O afastamento, a aproximação... Neste instante, o furor se acende em Páscoa, que avança sobre o marido. Com um safanão, é arremessada para uma cadeira, que se vira, e, sobre o móvel, cai no chão. Faz-se o som do martelo sobre a concha. Partes voam. Páscoa se recusa a ver essa destruição.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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