DESTRUIÇÕES
Ao
ultrapassar o portão do casarão, Páscoa vê Tião e Belizária que se esquivam em
direção do fundo do jardim. Estranha a reação. Hesita em entrar. Tarde para
recuar. Herculano aparece à porta principal, com a fisionomia tesa. O coração
dela dispara e lhe ocorre que ele está bravo por não tê-la encontrado em casa.
O
marido se aproxima, toma seu braço e a impulsiona a andar. Penetram o vestíbulo
e passam ao lado de Quitéria desolada. Na sala de estar, Páscoa vê seu cesto de
bordado aberto com os objetos jogados sobre o sofá. Suspeita das razões e de
quem vasculhou a cesta: mas como pôde ter
sabido de Grego? À biblioteca, é forçada a se sentar na cadeira em frente
da escrivaninha, enquanto a descoberta da saída clandestina, as dúvidas de uma
traição atiçam os demônios de Herculano. Quer uma confissão.
--
Onde estava?
Páscoa
teme falar e mentir. Mantém-se em silêncio.
--
Pelo amor que tem a sua vida, diga onde estava?
Sem
obter resposta, contorna a escrivaninha. Da gaveta, retira um revólver.
Páscoa
tem certeza que alguém a denunciou ao marido e tenta se convencer de que a arma
é apenas para amedrontá-la. Fecha as mãos nos braços da cadeira e com o olhar
acompanha o deslocamento de Herculano em sua direção. Pelo cabelo, sua cabeça é
puxada para trás e sua face se mantém sob o foco da expressão vidrada de ódio.
--
Quer levar para o inferno sua perdição?
Seus
olhos aterrorizados esguelham-se ao máximo, atentos ao braço que se ergue, com
a arma em punho. As pálpebras se fecham quando o metal frio e duro pressiona a
têmpora. É o fim, pensa.
--
Ainda há tempo. Diga, onde estava?
O
ódio embranquece o rosto de Herculano. As maçãs da face tremulam e o dedo
aperta o gatilho. Um estalo seco soa. Páscoa percebe que nada aconteceu. Abre
os olhos e vê a sordidez sobre si. Sente a ânsia subir à garganta, o sufoco,
agita-se, Herculano a solta e ela vomita.
--
Confesse e terá uma pena mais leve, diz e a empurra para fora da biblioteca.
De
novo, cruzam com Quitéria, que se desespera de vez com a feição alucinada de um
e a palidez desgrenhada do outro. Segue os dois até a cozinha, onde param
diante do fogão, sob o olhar aflito de Tião e Belizária. Um tacho de cobre está
sobre o degrau do fogão, ao lado dos livros, da concha e do lençol. Quitéria
suplica.
--
Tenha piedade, Capitão.
--
Tião leve sua mulher daqui e feche a porta.
Os
empregados saem e se amontoam ao lado da janela.
Páscoa
continua parada, cabeça abaixada, coração acelerado. Ouve a violência que
destroça o romance Bovary e lança as páginas dentro do tacho de cobre. Não vê
também o destino idêntico que se abate sobre Casa de Bonecas, até que as mãos
furiosas erguem o seu rosto. Com um sorriso perverso, ele joga a enseada
bordada dentro do tacho, verte um líquido sobre os pertences e ateia o fogo. --
Não, ela exclama ao som da combustão.
Herculano
pega um martelo e anda ao redor da mulher, que olha para a concha solitária no
avermelhado degrau do fogão.
--
Tenho todo o tempo do mundo. Você falará.
Tudo
então se repete. O afastamento, a aproximação... Neste instante, o furor se
acende em Páscoa, que avança sobre o marido. Com um safanão, é arremessada para
uma cadeira, que se vira, e, sobre o móvel, cai no chão. Faz-se o som do
martelo sobre a concha. Partes voam. Páscoa se recusa a ver essa destruição.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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