terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Capítulo Vinte

INHANGÁ


As ondas vêm e vão, com força, sobre a fronteira natural do arraial com o areal do Leme. Para Quitéria, o passeio terminava nesse ponto; dali mesmo, as três voltavam para trás. Teme passar pelas costas da pedreira negra que é guardada por dois outros rochedos. Juntos, os três formam as pedras de Inhangá. Quitéria acredita que são assombradas – uma visagem que vigia a natureza e possui um assobio forte, mais ruidoso do que o do mar. Porém, se não há outro jeito, acaba indo. Mas antes deixa no chão o balaio que traz e bate as mãos para um lado, para outro, para cima, para baixo.
-- Salve, salve, Inhangá, peço licença para passar. Somos do bem e seguimos em paz. Saudadas as nobres pedreiras, aguarda um tempo e depois entra com o passo apressado, com Sofia de um lado e Páscoa, do outro. 
A garota teme os riscos que a família corre ao passar por ali.
-- Porco e galinha, a Inhangá deixa matar?
-- Se galinha tá chocando e porca tá com porquinho, nem pensar.
-- Isso a gente não faz. Não tem perigo então.
-- Mas vai saber o que Inhangá acha que é bicho...
Rápido no passo e no entendimento, o trio chega ao outro lado da praia. Aliviada, Quitéria benze-se mais uma vez por conta do sucesso da passagem. Sofia corre em direção à Pã e Páscoa para ao ver Grego vestido de um modo sóbrio, hirto, que o torna elegantemente comum, sem o despojamento sensual que aprecia. Inquieta-se: aonde será que vai vestido assim? Caminham ao encontro um do outro – ela receosa e ele cauteloso com o que tem para falar. Desenxabidos, assistem o alvoroço da chegada. O cachorro fareja curiosamente o balaio de Quitéria.
-- Chispa daqui!
-- Vem cá, Pã, vem, chama Sofia.
A ama recolhe os sapatos da menina largados pelo caminho e segue para as amendoeiras da praia. Entre as árvores, retira da cesta um pano que estende sobre a areia e nele se aboleta. Primeiro um joelho, depois o outro; em seguida, gira e assenta o corpanzil. Da cesta ainda tira linha, agulha e retalhos, que coloca no colo. Olha para o céu: que dia feio! Depois ao redor: Sofia pegando conchinha, longe das águas, com Pã por perto e a praia sem pescadores – antes assim! O casal próximo das pedras – Que não me saiam dali.  Com tudo ao alcance dos olhos, põe-se a costurar.
O silêncio se esvai perto de Inhangá.
-- Tenho que estar cedo na cidade.
Páscoa sente uma pontada funda no peito; receia que a ausência seja demorada.
-- Suponho que tenha um compromisso importante.
-- Podemos conversar em outro lugar?
A indagação a aflige. Teme ir até aonde seus desejos pedem. Olha em direção a Sofia e depois a Quitéria. Grego a encoraja.
-- Não sentirão nossa falta. Venha. Tenho pouco tempo.
O temor se desdobra na vontade de ficar, de retardar o que quer que seja que Grego tem a dizer. Porém Páscoa o segue. Ri de si mesma quando descobre que o outro lugar era logo ali, nas costas de Inhangá. Mesmo assim, caminha em direção ao mar, para adiar um pouco mais o que está prestes a ouvir. Grego a acompanha.
-- Parece que vai chover.
-- É.
-- Uma companhia de teatro lírico chegou.
-- Mais trabalho então.
-- Muito. Ficarei na cidade até o mês que vem.
A emoção chicoteia Páscoa. Uma onda forte arrebenta. Os dois recuam.
-- Voltará?
-- Têm ensaios, às vezes, à noite; afazeres logo cedo; melhor ficar direto lá.
Páscoa se vê de novo sozinha, diante de partidas sobre as quais nada pode fazer. Como os homens andam, partem, transformam a ausência na mais forte presença! Sente uma bambeza e se encosta às pedras. Grego se aflige com a reação.
-- Hei, não fique assim. Talvez possa dar uma escapulida até aqui.
Escapulida! A expressão fere os ouvidos, a sensibilidade, a memória de Páscoa. Pressente que o amor escapa a Grego, que pode dar uma escapulida. Por sua vez, ela escapole, mas como uma ladra que pula muros e janelas para roubar um naco de alegria – que, também fugidia, já lhe escapa das mãos.
Grego tenta contornar a situação.
-- Quem sabe não consigo algum tempo, numa noite dessas, e chego até aqui?
Páscoa estremece. Impossível viver breves noites, mesmo iluminadas. O silêncio sombrio deixa o outro nada à vontade. Será que não entende? Coisas da vida!
 -- Há quanto tempo sabe desse compromisso?
O desconforto do homem transforma-se em pressão. Marcara o compromisso muito antes do banho de mar. E quando começaram a se encontrar, decidiu tatear nesse nevoeiro que se tornaram sem dizer nada. Por que antecipar problemas?
-- Vida! Que diferença faz?
Páscoa não sabe se foi chamada de vida ou se Grego apenas invocou a vida. E intui a resposta não dita. Ele sempre soube o tempo que possuíam para brincar de faz de conta. Aturdida, mira o mar. Percebe que, de fato, essa informação pouco importa. Importa sim que ela é uma mulher casada e ele um homem livre que a brindou com alegrias e a deixou se expressar como nunca ninguém lhe permitiu, sem pressioná-la a se entregar ao prazer maior desse encontro transgressor. É isso o que dói, o que a amedronta: não saber como será a vida dali para frente, sem a emoção, a leveza e a solicitude dessa companhia.  
O desalento encostado nas pedras comove Grego, que se aproxima para abraçá-la.
-- Por favor, não, pede Páscoa, esquivando-se.
A recusa o constrange, o impasse também. Não percebe? Se pudesse ficaria. Além do mais, a vida é como música. Nem sempre há harmonia e a dissonância ressalta a melodia. Mesmo desapontado com a reação, tenta contornar a situação.
-- Quando volta para a cidade?
-- Faz diferença saber?
Assim é demais. É querer tornar tudo mais difícil. A vida segue adiante... E os barcos continuam a flutuar no mar.
-- Seja como for, estarei no Theatro Lírico.
-- Quem vai cuidar de Pã?
A preocupação com o cachorro a redime ao espírito tensionado.
-- Vou levá-lo para a casa de Azulão.
Pés enraizados na areia, o coração bate constrangido no homem, aflito, na mulher. Uma trovoada se faz ouvir.
-- Vamos embora, vai chover.
Sofia e Quitéria levantam acampamento, preocupadas com o paradeiro dos dois, que em breve aparecem. Grego assovia – o assovio dói em Páscoa – e Pã corre em sua direção. A garota e a ama se reúnem ao casal.
-- Vem chuva, fala Quitéria.
-- É melhor tomarem o bonde. Acompanho as senhoras até lá.
Apressados, o grupo deixa a praia, as pedras de Inhangá.


Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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