domingo, 14 de dezembro de 2014

Capítulo Vinte e Sete

A ARTE DA ALMA


Ultrapassado o grande portão do Theatro Lyrico, por entre o vaivém de pessoas, perguntando aqui e ali, as duas penetram os labirintos do prédio. Figurinos, móveis, adereços e lampiões são relanceados pelos olhos ávidos de descobertas e busca. O som de um piano chega de algum lugar. Vozes ecoam e as mulheres param diante de uma porta fechada. Alguém passa e confirma a indagação.
-- Pode entrar, ele tá aí.
Quitéria prefere aguardar do lado de fora. Páscoa abre a porta. Grego interrompe o trabalho. Os olhos se encontram e brilham, enquanto os corpos desejam o abraço já vivido no mar. Mas o recato os freia e o ressoar dos corações marca a aproximação cheia de compostura. O homem toma a mão que se lhe estende e a beija levemente. O toque suave e quente eriça a pele.
-- Vida! Que bom te ver. Voltei ao arraial, mas já havia partido.
A saudação releva tristezas e torna o enlevo ainda maior. Suavemente a mão beijada se recolhe e o corpo se movimenta pela oficina.
-- É um grande espaço.
-- Precisa atender a uma orquestra, esclarece o homem, saudoso dessa curiosidade, que admira seu mundo com um frescor tal, que estufa de vaidade o seu peito, inebria sua mente e impele seu corpo a querer se meter em confusão.
Entre potes de breu, pincéis, panos, uma mescla de longos fios repousa sobre a mesa ao lado de uma fileira de arcos.
-- O que é isso?
-- Crina de cavalo para as cerdas do arco.
-- Ah!
-- Estou trocando algumas. Violinos são sensíveis. Desafinam com facilidade.
Como é bom o mundo de Grego. Dualidades são tão bem aceitas. Mar tem benesses e destruição – e tudo bem. Natureza é inconstante e perigosa – faz parte. Violinos desafinam por essência – qual o problema? São belos. Quanta tranquilidade!
Embasbacada, Páscoa se transporta para as cordas, para as cerdas, para a transcendência ereta, audível diante de si e tão desejosa de vir a ser tátil também. Grego apresenta madeiras e diferenças de uso: uma porque é macia, outra porque é resistente. Explica sobre fricção, dedilhamentos que rangem, tangem e produzem o som. Estende-se na passagem das cerdas do arco sobre as cordas do tronco oco do violino – onde, sozinha, habita a alma do instrumento que faz o som vibrar por todo o corpo.
-- O arco é a arte da alma.
Páscoa concorda. Acha que deve ser assim mesmo como ele diz. Quer saber mais.
O dito encadeia novos e sucessivos temas, por onde as particularidades miúdas de um são reveladas e vibram no corpo do outro, num ir-e-vir de reciprocidades, revelações e fascínio que os entrelaçam mais uma vez e sempre mais.
O som do piano já parou e o das vozes é quase nenhum. Quitéria se apresenta e lembra o adiantado da hora. Mas Grego pede a Páscoa que o acompanhe antes de ir. Quer lhe mostrar o Theatro de um lado que ela, provavelmente, nunca viu. Ávida por conhecer tudo, segue-o. Quitéria só faz aguardar.
Sobem na coxia imersa em penumbra. Passam por entre as negras tapadeiras laterais e chegam ao palco, onde reverbera o silêncio profundo do espaço. Páscoa caminha em direção ao proscênio. Ali contempla o fosso da orquestra, a plateia, os camarotes... E depois o fundo da gruta mágica onde a arte recria a vida. Seus olhos se encontram novamente com os de Grego, mensageiro absoluto de mundos novos que a fita, enamorado e a faz concluir: Como pude viver tão longe de tanto?
-- Virá com seu marido na estreia de Gioconda?
A abordagem direta traz Herculano para o centro do palco. Invade o momento de ilusão, embaraça e defronta Páscoa com o lado real da sua vida. 
-- Não sei, responde, apesar de raramente sair com o marido.
-- Após a estreia, estarei mais livre, mas depois da temporada sigo com a companhia. Faremos uma turnê por São Paulo, Buenos Aires e Montevidéu.
Páscoa sente-se engolida pelas ondas do vaivém de Grego, confrontada com as marés do proibido objeto de desejo, que sorve suas forças.
-- Por quanto tempo?
-- Estarei de volta antes da primavera.
Cinco meses! É demais. Deseja partir. Abandonar de vez essa ilusão.
-- Preciso ir. Já é tarde.
-- Quando poderei vê-la de novo?
-- Não sei dizer.
Entre o temor e o drama, deixa o palco. Como uma diva, Grego acha. Desanimado com o dissonante desfecho, segue-a até o portão. Em silêncio, se separam.
Quitéria observa o jeito parado de Páscoa, sentada ao lado no banco do bonde: o que o maneiroso fez? Melhor um fim já que depois.  Um entendimento próximo ao da observada, que tenta se convencer de quão providencial é a viagem de Grego. Impedirá que a fagulha do seu desejo alcance a pólvora do outro de candura ardente. Precisa se equilibrar na sua hesitante coragem para viver a vida possível, não a anelada por uma fantasia, que se adensa estimulada por um fado transgressor. Ligar vida ao destino exige destemor. Como desejar o que não tenho força para realizar?  Que Grego cumpra o seu percurso e eu, o meu.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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