A ARTE DA ALMA
Ultrapassado
o grande portão do Theatro Lyrico, por entre o vaivém de pessoas, perguntando
aqui e ali, as duas penetram os labirintos do prédio. Figurinos, móveis,
adereços e lampiões são relanceados pelos olhos ávidos de descobertas e busca.
O som de um piano chega de algum lugar. Vozes ecoam e as mulheres param diante
de uma porta fechada. Alguém passa e confirma a indagação.
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Pode entrar, ele tá aí.
Quitéria
prefere aguardar do lado de fora. Páscoa abre a porta. Grego interrompe o
trabalho. Os olhos se encontram e brilham, enquanto os corpos desejam o abraço
já vivido no mar. Mas o recato os freia e o ressoar dos corações marca a
aproximação cheia de compostura. O homem toma a mão que se lhe estende e a
beija levemente. O toque suave e quente eriça a pele.
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Vida! Que bom te ver. Voltei ao arraial, mas já havia partido.
A
saudação releva tristezas e torna o enlevo ainda maior. Suavemente a mão
beijada se recolhe e o corpo se movimenta pela oficina.
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É um grande espaço.
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Precisa atender a uma orquestra, esclarece o homem, saudoso dessa curiosidade,
que admira seu mundo com um frescor tal, que estufa de vaidade o seu peito,
inebria sua mente e impele seu corpo a querer se meter em confusão.
Entre
potes de breu, pincéis, panos, uma mescla de longos fios repousa sobre a mesa
ao lado de uma fileira de arcos.
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O que é isso?
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Crina de cavalo para as cerdas do arco.
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Ah!
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Estou trocando algumas. Violinos são sensíveis. Desafinam com facilidade.
Como
é bom o mundo de Grego. Dualidades são tão bem aceitas. Mar tem benesses e
destruição – e tudo bem. Natureza é inconstante e perigosa – faz parte.
Violinos desafinam por essência – qual o problema? São belos. Quanta
tranquilidade!
Embasbacada,
Páscoa se transporta para as cordas, para as cerdas, para a transcendência
ereta, audível diante de si e tão desejosa de vir a ser tátil também. Grego
apresenta madeiras e diferenças de uso: uma porque é macia, outra porque é
resistente. Explica sobre fricção, dedilhamentos que rangem, tangem e produzem
o som. Estende-se na passagem das cerdas do arco sobre as cordas do tronco oco
do violino – onde, sozinha, habita a alma do instrumento que faz o som vibrar
por todo o corpo.
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O arco é a arte da alma.
Páscoa
concorda. Acha que deve ser assim mesmo como ele diz. Quer saber mais.
O
dito encadeia novos e sucessivos temas, por onde as particularidades miúdas de
um são reveladas e vibram no corpo do outro, num ir-e-vir de reciprocidades,
revelações e fascínio que os entrelaçam mais uma vez e sempre mais.
O
som do piano já parou e o das vozes é quase nenhum. Quitéria se apresenta e
lembra o adiantado da hora. Mas Grego pede a Páscoa que o acompanhe antes de
ir. Quer lhe mostrar o Theatro de um lado que ela, provavelmente, nunca viu.
Ávida por conhecer tudo, segue-o. Quitéria só faz aguardar.
Sobem
na coxia imersa em penumbra. Passam por entre as negras tapadeiras laterais e
chegam ao palco, onde reverbera o silêncio profundo do espaço. Páscoa caminha
em direção ao proscênio. Ali contempla o fosso da orquestra, a plateia, os
camarotes... E depois o fundo da gruta mágica onde a arte recria a vida. Seus
olhos se encontram novamente com os de Grego, mensageiro absoluto de mundos
novos que a fita, enamorado e a faz concluir: Como pude viver tão longe de
tanto?
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Virá com seu marido na estreia de Gioconda?
A
abordagem direta traz Herculano para o centro do palco. Invade o momento de
ilusão, embaraça e defronta Páscoa com o lado real da sua vida.
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Não sei, responde, apesar de raramente sair com o marido.
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Após a estreia, estarei mais livre, mas depois da temporada sigo com a
companhia. Faremos uma turnê por São Paulo, Buenos Aires e Montevidéu.
Páscoa
sente-se engolida pelas ondas do vaivém de Grego, confrontada com as marés do
proibido objeto de desejo, que sorve suas forças.
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Por quanto tempo?
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Estarei de volta antes da primavera.
Cinco
meses! É demais. Deseja
partir. Abandonar de vez essa ilusão.
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Preciso ir. Já é tarde.
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Quando poderei vê-la de novo?
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Não sei dizer.
Entre
o temor e o drama, deixa o palco. Como uma diva, Grego acha. Desanimado
com o dissonante desfecho, segue-a até o portão. Em silêncio, se separam.
Quitéria
observa o jeito parado de Páscoa, sentada ao lado no banco do bonde: o que o maneiroso fez? Melhor um fim
já que depois. Um entendimento
próximo ao da observada, que tenta se convencer de quão providencial é a viagem
de Grego. Impedirá que a fagulha do seu desejo alcance a pólvora do outro de
candura ardente. Precisa se equilibrar na sua hesitante coragem para viver a
vida possível, não a anelada por uma fantasia, que se adensa estimulada por um
fado transgressor. Ligar vida ao destino
exige destemor. Como desejar o que não tenho força para realizar? Que Grego cumpra o seu percurso e eu, o meu.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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