terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Capítulo Cinquenta e Dois

DO DESEJO INEGOCIÁVEL


Se pelo menos o Capitão parasse em casa. Se o maneiroso sumisse, pensa Quitéria, descorçoada com o desvario de Páscoa. Tudo a sobressalta: as saídas furtivas, as demoras imprudentes, os retornos cheios de palidez suspeita – e ainda os olhos enxeridos e a boca fuxiqueira de Belizária.
-- Nossa! Dona Páscoa tá tão mudada, não? De um mês para cá, quase todo dia vai pra rua. Que tanto visita a madame ou é o irmão dela que vai visitar?
Quitéria estremece, ralha, ameaça, mas Belizária não se emenda. Redobra as preces e as mentiras ditas até para Tião, que percebe o esquisito e desenvolto entra e sai. Chama a mulher no canto.
-- O que acoberta?
-- Nada, não.
-- Bota tento nos olhos e juízo no coração. O mundo é cruel. 
Outubro avança e Quitéria se desespera. Parte para Laranjeiras e pede ajuda para Maria Luísa. A advogada entende que Páscoa tem omitido a extensão do romance desde o retorno de Grego e se preocupa. Promete falar com a amiga na primeira oportunidade. Mas Quitéria tem pressa.
-- Por que não amanhã mesmo? Poderão conversar à vontade. O Capitão tem hora certa pra sair, mas não pra voltar.
Arranjo combinado, arranjo realizado. No caramanchão do casarão, Maria Luísa pede a Páscoa que desista de um prazer momentâneo e arriscado para viver um prazer maior e mais seguro no futuro. O pedido não é compreendido.
-- Como posso reter o que sinto, se a paixão só vale à pena em uma entrega total?
-- Não teme as consequências?
-- Temo, mas sigo em frente. Quem sabe assim não venço os meus medos?
-- Se é o medo que quer vencer, encare de vez Herculano e peça a separação antes que ele descubra.
-- Ele está tenso com as coisas do governo. Aguardo uma hora melhor para falar.
-- Uma atitude sensata, a mesma que deve ter com Grego. Adie os encontros para quando estiver separada. Se descobertos, serão a sua perdição.
-- Não agoure.
-- Não se trata disso e sim de evitar que seja julgada como uma adúltera.
-- Que palavra horrível, como se eu tivesse adulterado a minha natureza.
-- Não é hora para filosofar nem para desafiar as convenções. Por mais imperfeitas que sejam as leis, sem o amparo delas, não terá a liberdade que quer.
Páscoa resiste. Sente-se quase imune e inacessível às pressões dos costumes e de suas leis. Quer prolongar o quanto puder a bem-aventurança que desfruta.
-- Teria dado as costas à paixão, se fosse casada?
-- Nunca pensei a respeito, mas creio que ouviria a voz da razão.
-- Quem ouviria: a mulher que purgou a desilusão ou a que conheceu o paraíso?
-- As duas e também a advogada amiga.
-- Então me compreenda: não posso me esquivar da felicidade que nunca tive.
-- Aprendi que a vida requer certa inapetência para ser bem vivida.
-- Diz isso porque nunca sentiu fome de afeto.
-- Tira conclusões precipitadas e quem está em perigo não sou eu.
-- Não é atolada em medos, sufocando desejos, que terei coragem para me separar.
-- Por isso desafia a fatalidade, como fez Bovary que tanto espanto lhe causou?
-- Não penhorei nenhum bem da família.
-- Mas está a dilapidar as suas possibilidades de defesa. Por favor, Páscoa! Espero de você a lucidez de uma Nora.
-- Não sou uma personagem.
-- Então acorde para a realidade. É loucura se render aos desejos ao preço que for. Proteja-se e ao que quer. 
Páscoa desnorteia-se. Um breve silêncio se faz. Maria Luísa retorna a falar.
-- O que Grego diz?
-- Do quê?
-- Ora, de como pensa resolver essa união.
-- Não conversamos sobre isso. O que vivemos é tão recente.
-- Recente é a consumação da paixão, não os riscos que vivem desde janeiro. É um tempo enorme para uma mulher casada.
-- Tenho que resolver a minha separação, não um pedido de casamento. 
-- A ironia não a ajuda e Grego é quem tem menos a perder nessa história.
-- Se o conhecesse, não teria esta preocupação.
-- Ele está quieto. Não acha isso estranho?
-- Já não disse que não falo do meu casamento?
-- E ele se silencia, sem revelar cuidados com você e desejos de um futuro juntos?
-- Não o julgue.
-- Apenas analiso os fatos e vejo uma baita omissão, além de imprudência.
-- Como pode ser tão racional?
-- A realidade exige.
-- Nem parece a mesma pessoa para quem me confidenciei.
-- Nem você a amiga a quem tão bem orientei. Estarei ao seu lado para o que der e vier, mas insisto: não faça dessa aventura uma catástrofe em sua vida.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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