terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Capítulo Sessenta e Um

NÃO SE SERVE A DOIS SENHORES


Um silêncio sepulcral paira no casarão. Páscoa faz vigília à janela do quarto, temerosa com seu destino. Sofia volta da escola. Por debaixo da porta, deixa um desenho para a mãe, que reconhece as duas em uma praia. As lágrimas correm no rosto de ambas. Quitéria entra com a janta e a prisioneira suplica.
-- Por tudo que lhe é mais sagrado, avise Maria Luísa.
-- Não posso, filha, não posso. Sinto cheiro de sangue no ar.
-- Isso é o que acontecerá se não agir, diz e corre para a porta. Depara-se com Tião e implora: -- Pelo bem que me tem, me ajude.
-- Deixa tudo acalmar, sinhá. Venha Quitéria.
A porta se fecha. Desalentada, Páscoa encolhe-se na cama. Vislumbra a ideia de se entregar para a polícia. Prefere a prisão ao jugo de Herculano.
Amanhece e a rotina da prisioneira se arrasta com sua vigília à janela. Lembranças da felicidade vivida se sucedem sem brilho e cor. A ama se aflige com o olhar parado, com a comida quase intacta no prato, com o deslocamento mudo para o banho, com o infortúnio que se prolonga. Reza por um milagre que as livre de um mal maior.
A noite chega e avança, o escuro se esvai. Um galo canta ao longe, um cachorro cruza a rua, gatos miam, enquanto o casarão dorme um sono sobressaltado. Lá fora, Grego se esgueira pela calçada, depois ao longo do gradil lateral do imóvel, quando então ladeia o muro dos fundos da propriedade que faz divisa com as fraldas do morro. Por esse caminho, desaparece lá no final.
O casarão acorda, as saídas matinais se repetem e as horas passam em angústia. De tarde, Tião sai para buscar Sofia na escola. O coche de Maria Luísa para. Páscoa se desorienta à janela. A amiga desce do carro, seguida de Grego. A presença dos dois avoluma o suplício de Páscoa, que faz sinal para que esperem e se afasta. Maria Luísa força abrir o portão. Chama em vão por Quitéria. A ausência de resposta confirma aos dois que o casarão vive condições anormais. Grego avista novamente Páscoa, que lhe mostra uma maleta. Compreende o sinal e balança afirmativamente a cabeça. Maria Luísa grita o nome de Quitéria. Grego puxa-a pelo braço e o casal parte.
-- Nunca mais ouse tocar o meu braço.
-- Achei melhor não chamar atenção.
-- Nem se atreva a tentar fugir com Páscoa.
-- Pode estar sendo maltratada.
-- Deveria ter se preocupado quando podia evitar esse sofrimento.
-- Não nos reunimos para brigar, doutora.
-- Pois então faça o que digo. Meu irmão chega amanhã de viagem e tentaremos intermediar a situação e resolver tudo dentro da lei.
-- Quando falarão com o Capitão?
-- Na segunda-feira talvez.
-- É muito tempo.
-- Não lê jornal, não vê o que se passa na cidade?
Grego está farto das ofensas de Maria Luiza.
-- Agradeço se puder tornar a nossa convivência pelo menos respeitosa.
-- Então ponha a cabeça para funcionar. O Capitão está às voltas com a Liga contra a vacinação. Com certeza, deixará qualquer outro assunto para resolver depois do comício de sábado. 
-- Procuro pela senhora no domingo. Fico aqui.
-- Como quiser.
Pela janela, Grego pede para o cocheiro parar. Atendido, despede-se e desce. Maria Luísa não sabe o que a amiga viu nele: mais parece um galo garnisé assustado.
A vigília de Páscoa começa bem cedo no dia seguinte. Mais que o retorno do amante, espera o da amiga, de quem quer guarida, enquanto a justiça decide o seu destino. Pede de novo ajuda para os agregados, quando Quitéria e Tião aparecem.
-- Por favor, eu preciso de proteção.
-- Filha!
Páscoa fita o empregado.
-- Ou cumpro ordens ou deixo o casarão, sinhá.
-- Não percebem? Corro perigo de vida. 
Tião abaixa a cabeça. O vivido desarranja seus princípios de sobrevivência. Contudo, tem que contrato não se quebra e sim se rompe – perspectiva que o assusta. Fecha a porta após a saída de Quitéria e ainda ouve a voz do outro lado.
-- Não me deixem.
O casal caminha pelo corredor. 
-- Melhor a gente falar com a doutora. 
-- Ajuda pra um, traição com outro.
-- Ela tá sofrendo que nem escravo no tronco!
-- A ordem foi dada e respondemos sim, senhor.
-- Tião, não bota tudo tão justo assim.
-- Não dá para servir a dois senhores. A casa cairá para nós também.
-- Uma prosa apenas.
-- Só se quiser ir embora depois.
-- Nem morta, deixo elas.
-- Tá tudo ficando muito difícil aqui.
-- Que seja, mas irei abrir o portão, se a doutora aparecer.
-- E fechar o nosso tempo na família. Pense nisso também. Vou buscar Sofia.
Sozinha, Quitéria decide dar folga para Belizária. Poupar seu olhar enxerido de presenciar a insubordinação cogitada. Caminha para o quintal, onde a moça recolhe roupas no varal.
-- Tire o dia de amanhã pra ficar em casa e descansar.
-- Até que eu gostaria, mas não posso.
-- Ora menina se eu tô dizendo que pode é porque pode.
-- Só que o Capitão quer eu venha amanhã e domingo, pra ficar com Sofia.
Quitéria teme o quê Belizária possa ter conversado com Herculano.
-- Tá de fuxico com o patrão?
-- Virgem, Dona Quitéria! Não sou tonta, não. Só gosto de saber das coisas, pra sonhar ou bendizer a vida que tenho. Ademais, gratidão não se paga com desgraça.
-- Bom que pense assim. E o que mais o Capitão falou?
-- Só isso. Deu a ordem e eu disse sim, senhor.
-- Espero que pare por aí.
-- De mim pode esperar. Mas de outros... Num fie, não. Coração não tem dono, mas o traído quer sangue, Dona Quitéria, sangue. Eu sei das coisas. Ah, como sei! 
A ama olha para o céu e implora proteção. 


Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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