terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Capítulo Cinquenta

O ENTRE E O DEPOIS


A manhã segue com os amantes entregues às carícias e há o verbo, a escuta, que faz a mente da mulher se sentir apreciada como o corpo se sente. Páscoa descobre a foto, que posou sozinha na cidade exposta em uma moldura sobre uma cômoda. A emoção leva o abraço. Possuem-se novamente. Grego percebe o quão sozinho estava e quão preenchido está pela entrega dessa mulher, que se convence de que nasceu para amar. Levantam-se e improvisam o almoço. O prazer de estar juntos emana dos dois. A prosa trocada e o vinho tomado prolongam a presença à mesa. O mormaço do dia atravessa as janelas, amplia a moleza dos corpos e os acomoda na tina de banho. Familiarizam-se mais com a intimidade que ousam compartilhar. A luminosidade anuncia o avançar da tarde.
-- Que horas serão?
-- Mais de três, menos de quatro.
Páscoa sorri de tamanha precisão.
-- Devo ir. Tenho um estirão pela frente.
-- Levo você. Vou providenciar um cavalo.
-- Será prudente?
-- Vamos pela trilha do morro; quase ninguém passa por lá essa hora.
As mãos masculinas se apoiam na borda da tina; o tronco feminino se inclina para frente, o homem se levanta – uma onda é formada e mais outra, quando a mulher volta a se recostar novamente. O mar sempre presente. Plenitude.
Logo mais, abraçada ao bem-querer, segue na garupa do cavalo. Outro desejo que se realiza. Estreita o abraço e Grego acaricia a sua mão.
-- Tenho a chave da casa de um amigo que viajou. Vamos nos encontrar lá. É mais seguro.
Páscoa diz que tudo bem, saboreando o que hoje possui. No alto do morro, param para contemplar a paisagem: o Pão de Açúcar, Niterói lá adiante, a cidade até onde a vista alcança; depois contemplam o lado de cá, as suas marcas: as pedras de Inhangá, os morros, o mar. Abraçam-se e se beijam e se olham enamorados. Prosseguem a cavalgada. Após os Arcos do Vigia, Páscoa apeia, separam-se e ela corre descendo a ladeira. Sente-se livre como o ar que bate em seu rosto.
A entrada no quarto ocorre acompanhada de uma Quitéria silenciosamente brava e decidida a tomar satisfação. Porta fechada, a ama desfia um rosário de queixas: o bom-senso roubado pelo maneiroso; o avançado das horas, quase em tempo de Sofia chegar da escola! Já imaginou se o Capitão volta mais cedo? Ou se aquela despachada bate no portão? Sim, porque foi por pouco. Mas o guia da ama não deixou. Soprou no ouvido dela: vá para a rua. E ela foi. Deu de cara com Maria Luísa, empombada no coche. E onde estava D. Páscoa? Ninguém sabia dizer. Pois, então, entregue a ela este livro, falou-lhe a despachada, que Quitéria arremeda enquanto retira a encomenda do bolso do seu avental. -- Tome, aqui está.
Páscoa pega o livro e lê: Casa de Bonecas.
-- E se Belizária visse? Sabe no ouvido de quem a sua visita de araque ia parar? Ainda mando essa menina embora. Filha, por favor, não faça mais isso. E tire já essa roupa – olha lá se não dou um sumiço nela em vez de lavar. Até onde foi nem quero perguntar. Mas temo. E quando descer pro jantar, faça cara de triste. Porque esse rosto aí, qualquer um desconfia.
A ama sai. Páscoa deita-se na cama, com o livro sobre o ventre. Está exaurida de prazer e ousadia. Conheceu a paixão. Chegou salva em casa. Que dia sublime! 
Após jantar sem o marido, borda na sala com a filha. Badala o carrilhão. Hora de dormir da pequena. Acompanha Sofia até o primeiro degrau da escada.
-- Quando for deitar, passo no seu quarto.
-- Está bem.
Sofia sobe e Páscoa se afasta. Observa o modo como anda. Nada diferente. Percebe que esperava uma mudança física em si após a entrega a Grego. Que bobagem! Olha-se no espelho sobre o aparador da sala. Acha que talvez a pele esteja mais clara. Pode ser. Sorri sensualmente e se admira. Tem vontade de dançar. Dança: os braços ondulam, o torso se inclina de um lado para outro enquanto as pernas se deslocam, até que o corpo gira e girando chega ao sofá onde se deixa cair.
Está feliz. Sente-se indiferente ao perigo que correu e que corre se alimentar essa felicidade. Acha que o tamanho do risco é condizente com o ganho que terá no final: ser dona de si. De um jeito ou de outro, conseguirá a sua carta de alforria. Mas não quer pensar em dificuldades, impasses e tristezas decorrentes da separação. Quer ir para a cama e, no escuro do quarto, relembrar as delícias da paixão.
Inclina-se sobre a cesta de bordados, desfranze a abertura e sorri ao ver a concha no fundo. Pega o bastidor sobre o sofá, dobra o pano do bordado e se percebe não como a inquilina inadequada, que habita desconfortavelmente o porão da sua casa-corpo, mas a sua proprietária, em vias de ocupar o cômodo central. Experimenta uma desconhecida sensação de posse de si mesma. Inclina-se novamente sobre a cesta, guarda o bordado, os apetrechos, puxa o cordão e o fecha em laço.
-- Páscoa.
O coração dispara, e a esposa expõe a face ao marido, temendo que algum vestígio despercebido por ela crie suspeitas de traição.
-- Como está?
-- Exausto, responde e se move em direção à biblioteca.
Sente-se aliviada com o afastamento do marido e pensa em ir para o quarto. Mas a percepção lampeja o recomendável de proceder como de costume. Levanta-se e o segue.
-- Já jantou?
-- Sim. E Sofia?
-- Dormindo.
Herculano abre a porta da biblioteca e para. Páscoa também. 
-- Por que não se recolhe?
-- Não precisa de nada?
-- Não, obrigado. Apago as luzes quando for deitar.
-- Boa noite, então.
-- Boa noite. 
Vira-se e move-se normalmente. Só no corredor, corre. Conseguiu passar pela prova. Que agonia! Que seja; é o preço.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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