INESPERADOS
O
relógio do casarão badala meia-noite. Páscoa acorda repentinamente. Sente o
coração bater descompassado. No quarto, nenhum sinal de Herculano. Levanta-se e
sai.
Entra
na cozinha. Roupas brancas estão de molho na água ainda quente de um caldeirão
sobre a trempe do fogão. Na fornalha, uma brasa resiste ao tempo. Páscoa põe
novos gravetos, que logo pegam fogo. Observa o crepitar da madeira, a dança das
chamas, o fogo revigorado sob a força da própria natureza, sem divisão,
hesitação. As palavras da amiga zumbem dentro da sua cabeça. Desarranjam
certezas da inevitável entrega ao sublime. Pressionam o rompimento do laborioso
encaixe de escolhas possíveis com oportunidades imperdíveis, que tão lentamente
ousou realizar. Não pode fugir das exigências da realidade. Precisa enfrentar a
separação e pagar o preço do que quer. Vou
falar com Grego, amanhã mesmo... Mexe na lenha a queimar. Herculano terá
água quente para o banho. Deixa a cozinha em direção ao quarto.
Hora
mais tarde, o marido retorna da rua e se deita. O sono o alcança de vez. A
madrugada avança. Batidas na porta do quarto os despertam. É Tião com um
recado.
--
Tão chamando o senhor lá fora.
Assuntos
de última hora exigem a participação do Capitão em deliberações que não podem tardar.
O inesperado muda o curso da madrugada. Luzes se acendem. Leitos ficam vazios.
Portas se abrem. Tião prepara o coche. Páscoa leva a filha de volta para a
cama. Herculano dá ordens para Quitéria:
--
Pode haver confusão na cidade. Adie compras; Sofia deve permanecer em casa,
nada de escola. Se Belizária vier, melhor ela pernoitar aqui.
--
Sim, senhor. E vosmicê, volta tarde?
--
Quando puder. Tião trará notícias.
--
Que a Virgem Maria e Oxalá protejam o senhor, Capitão.
Herculano
parte. Portas se fecham. Luzes se apagam. Inquietações rolam sobre o leito. E a
madrugada segue seu curso. O dia amanhece. A manhã transcorre. Páscoa atravessa
a sala e entra na cozinha. Tião está rodeado por Quitéria, Belizária e Sofia.
--
Mas os meninos jornaleiros tão gritando na rua: conspiração contra o governo,
diz Belizária.
--
Oh, menina! É diz-que-me-disse, não viu Tião falar?
--
As tropas sairão?
--
Não, sinhá. É boato.
--
Mas eu não vou pra escola, vou?
--
Não, filha. E o que mais Herculano disse?
--
Pra não se preocupar. Pode demorar pra voltar.
--
Onde ele está?
--
Na Praia Vermelha.
--
Obrigada, Tião.
--
Licença, sinhá.
O
empregado sai e as mulheres se dispersam pela cozinha.
--
Que manhã! Salve Oxalá, meu pai!
--
Sei não... Sei não... No caminho, vi muito guarda na rua.
--
Se Tião disse que tudo tá resolvido, é porque tá. E não se fala mais nisso.
--
Posso escolher feijão, Quitéria?
--
Pode, Sofia.
Páscoa
caminha pelo interior do casarão. Abre a porta da frente e sai. Vê o guarda do
hospício, na sua ronda diária e depois o coche de Maria Luísa que se aproxima.
Ligeira, atravessa o jardim e alcança o passeio no instante em que o cocheiro
estanca os cavalos. Abre a portinhola do coche e entra, sem dar tempo da amiga
descer.
--
Que bom que veio!
--
José Inácio está fora. Fiquei preocupada com as notícias. É verdade?
--
Armação, já está tudo esclarecido.
--
Bom saber, preocupei-me com vocês.
--
Obrigada, querida. Posso lhe pedir um grande favor?
--
Se puder ajudar.
--
Não tenho uma desculpa para sair de casa...
Maria
Luísa se inquieta. Páscoa torna-se mais veemente.
--
Preciso falar com Grego. Por favor, só conto com você.
A
amiga continua indecisa. Páscoa toma suas mãos.
--
Prometo não envolvê-la nunca mais.
--
Fará o que precisa ser feito?
--
Prometo.
--
Apresse-se, então.
--
Volto em um minuto.
Páscoa
desce do coche e adentra o casarão em correria.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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