terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Capítulo Cinquenta e Três


INESPERADOS


O relógio do casarão badala meia-noite. Páscoa acorda repentinamente. Sente o coração bater descompassado. No quarto, nenhum sinal de Herculano. Levanta-se e sai.
Entra na cozinha. Roupas brancas estão de molho na água ainda quente de um caldeirão sobre a trempe do fogão. Na fornalha, uma brasa resiste ao tempo. Páscoa põe novos gravetos, que logo pegam fogo. Observa o crepitar da madeira, a dança das chamas, o fogo revigorado sob a força da própria natureza, sem divisão, hesitação. As palavras da amiga zumbem dentro da sua cabeça. Desarranjam certezas da inevitável entrega ao sublime. Pressionam o rompimento do laborioso encaixe de escolhas possíveis com oportunidades imperdíveis, que tão lentamente ousou realizar. Não pode fugir das exigências da realidade. Precisa enfrentar a separação e pagar o preço do que quer. Vou falar com Grego, amanhã mesmo... Mexe na lenha a queimar. Herculano terá água quente para o banho. Deixa a cozinha em direção ao quarto.
Hora mais tarde, o marido retorna da rua e se deita. O sono o alcança de vez. A madrugada avança. Batidas na porta do quarto os despertam. É Tião com um recado.
-- Tão chamando o senhor lá fora.
Assuntos de última hora exigem a participação do Capitão em deliberações que não podem tardar. O inesperado muda o curso da madrugada. Luzes se acendem. Leitos ficam vazios. Portas se abrem. Tião prepara o coche. Páscoa leva a filha de volta para a cama. Herculano dá ordens para Quitéria:
-- Pode haver confusão na cidade. Adie compras; Sofia deve permanecer em casa, nada de escola. Se Belizária vier, melhor ela pernoitar aqui.
-- Sim, senhor. E vosmicê, volta tarde?
-- Quando puder. Tião trará notícias.
-- Que a Virgem Maria e Oxalá protejam o senhor, Capitão.
Herculano parte. Portas se fecham. Luzes se apagam. Inquietações rolam sobre o leito. E a madrugada segue seu curso. O dia amanhece. A manhã transcorre. Páscoa atravessa a sala e entra na cozinha. Tião está rodeado por Quitéria, Belizária e Sofia.
-- Mas os meninos jornaleiros tão gritando na rua: conspiração contra o governo, diz Belizária. 
-- Oh, menina! É diz-que-me-disse, não viu Tião falar?
-- As tropas sairão?
-- Não, sinhá. É boato.
-- Mas eu não vou pra escola, vou?
-- Não, filha. E o que mais Herculano disse?
-- Pra não se preocupar. Pode demorar pra voltar.
-- Onde ele está?
-- Na Praia Vermelha.
-- Obrigada, Tião.
-- Licença, sinhá.
O empregado sai e as mulheres se dispersam pela cozinha.
-- Que manhã! Salve Oxalá, meu pai!
-- Sei não... Sei não... No caminho, vi muito guarda na rua.
-- Se Tião disse que tudo tá resolvido, é porque tá. E não se fala mais nisso.
-- Posso escolher feijão, Quitéria?
-- Pode, Sofia.
Páscoa caminha pelo interior do casarão. Abre a porta da frente e sai. Vê o guarda do hospício, na sua ronda diária e depois o coche de Maria Luísa que se aproxima. Ligeira, atravessa o jardim e alcança o passeio no instante em que o cocheiro estanca os cavalos. Abre a portinhola do coche e entra, sem dar tempo da amiga descer.  
-- Que bom que veio!
-- José Inácio está fora. Fiquei preocupada com as notícias. É verdade?
-- Armação, já está tudo esclarecido.
-- Bom saber, preocupei-me com vocês.
-- Obrigada, querida. Posso lhe pedir um grande favor?
-- Se puder ajudar.
-- Não tenho uma desculpa para sair de casa...
Maria Luísa se inquieta. Páscoa torna-se mais veemente.
-- Preciso falar com Grego. Por favor, só conto com você.
A amiga continua indecisa. Páscoa toma suas mãos.
-- Prometo não envolvê-la nunca mais.
-- Fará o que precisa ser feito?
-- Prometo.
-- Apresse-se, então.
-- Volto em um minuto.
Páscoa desce do coche e adentra o casarão em correria.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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