sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Quarenta e Quatro

DO LIBERTADOR E DO PARALISANTE


-- Dr. José Inácio, o que acha de continuarmos nossa conversa na biblioteca? Tenho certeza de que as senhoras querem pôr seus assuntos em dia!
Páscoa observa a desenvoltura de Herculano. Lembra aquele que desfilou com ela garbosamente pelo saguão do Theatro Lyrico: tão amável... Se fosse sempre assim com ela, tem certeza de que a sua vida teria tomado outro rumo.
José Inácio, um quarentão alto e magro, barba e bigode bem aparados e postura afável, levanta-se. Após as devidas vênias, as duas mulheres são deixadas a sós na sala.
-- Muito simpático o Dr. José Inácio.
-- É um irmão querido e um grande incentivador da minha carreira.
-- Percebi. Falou com orgulho dos estudos que a senhora fará no exterior.
-- Ora, por favor, me chame de você e me conceda tal liberdade. Somos tão jovens! Além do mais, não lhe parece que nos conhecemos há muito tempo?
-- Talvez sejam as nossas afinidades. Também gosto de ler e adoraria viajar. Para onde vai mesmo?
-- Paris. Sorbonne.
A anfitriã suspira sonhadora, tentando imaginar-se no lugar da candidata à amiga.
-- O que mais vai aprender se já é formada?
-- Vou me especializar em direito civil, mas antes farei algumas disciplinas na Faculdade de Letras. Há uma porção de ciências novas no curso, como psicologia e ciências sociais, que pretendo estudar. Busco ter um olhar enciclopédico.
 Páscoa fica fascinada com esse olhar; imagina a amplitude que pode ter.
-- Entendo.
-- Se não conhecemos os conceitos que regulam nossa sociedade, se não diferenciamos dogmas de conhecimentos, como vamos poder defender nossos direitos?
-- Fala de...
-- Liberdades civis e políticas! Na Nova Zelândia as mulheres já votam, sabia?
-- Não.
-- Pois votam desde 1893. Uma nova época se inicia para nós. Quero escrever sobre os nossos direitos ainda presos aos véus da ignorância.
-- Podem ser retirados?
-- Não facilmente. Porém há caminhos: na tribuna, nas publicações e na educação.
O mundo se torna maior para Páscoa neste instante.
-- Muitos caminhos.
-- E todos esperando por nós. Você viu Casa de Boneca de Ibsen? Foi encenada aqui no Rio, há poucos anos.
-- Não tive oportunidade. O título soa tão infantil.
-- Pois é exatamente o que Nora, a personagem, descobrirá: que é infantilizada pelo marido e que não passa de uma boneca para ele. Decide, então, separar-se.
Páscoa fica boquiaberta com a revelação.
-- Que coragem!  
-- E lucidez! Quando o marido a lembra dos seus deveres de esposa e mãe, Nora responde que possui outros deveres tão sagrados quanto aqueles: o dever para com ela mesma; que não pode pensar mais pelo que diz a maioria. Precisa refletir por conta própria, tentar compreender quem é e o que quer na vida. Rompe o casamento e parte.
A resposta de Norma soou a Páscoa como a mais perfeita tradução dos seus anseios, porém ditos sob um prisma radicalmente novo: sempre entendeu o pensar só em si como egoísmo, jamais como um dever sagrado para consigo mesma. Respira fundo e revela o efeito dessa diferença.
-- Um entendimento libertador, não?
-- Totalmente.  Não podemos mais nos sujeitar a esse estado de infância adulta que nos impõe a lei e os costumes. Gosto tanto de Casa de Bonecas, que tenho planos de escrever sobre a peça durante meus estudos em Paris. O que acha de uma defesa dos direitos da mulher com base nas questões de Nora?  
O que Páscoa acha além da infinita possibilidade de ajuda que tem a sua frente? Que tudo é possível para Maria Luísa. Está fascinada com esse vendaval de informações que ela é; estupefata com a desenvoltura com que trafega em temas que desconhecia ou que não sabia como pensar sobre eles e muito menos se expressar tão bem.
-- Fará uma grande e importante defesa.
-- Obrigada – e há muito a ser feito. Veja que absurdo: desde 1890 o marido não pode mais impor castigo corpóreo à mulher, nem aos filhos. E quantos casos você não conhece de mulheres e crianças que apanham todo santo dia?
-- É muito triste... Não há nenhuma outra mudança na lei que nos ajude?
-- Infelizmente, não. Nossa capacidade jurídica não é reconhecida e questões de foro íntimo são mal contempladas, como o divórcio, que atinge também os homens.
Uma onda de calor percorre o corpo de Páscoa.
-- Não conheço nada sobre separações.
-- A lei só permite a separação de corpos e de bens; porém, impede o casal de contrair novas núpcias, a menos que um dos cônjuges morra. E pasme para as distinções quando o motivo é o adultério. Se o marido for o adúltero, cabe à esposa provar o envolvimento extraconjugal. O inverso não. Basta o esposo dizer que viu a mulher de prosa com outro homem, que a acusação é aceita. E com prisão do adúltero. A intimidade também é assunto do código penal.
As informações caem como um raio sobre Páscoa e dão corpo ao medo. Agora não é mais a imprecisa sensação de transgressão que a atemoriza, mas o conhecimento das consequências legais dos riscos dos dias iluminados vividos e dos que se anelam em seu coração: adúltera, repete em silêncio.
Maria Luísa observa a palidez do seu rosto.
 -- Você está bem?
Sofia entra na sala.
-- O lanche está servido.
Páscoa olha para a menina e o medo de ser a perdição da filha aperta o peito. Sofia percebe a expressão esquisita em seu rosto: o que essa mulher fez com a minha mãe? Maria Luísa intervém.
-- Quantos anos você tem, Sofia?
-- Quase dez, responde num tom seco e, antes que seja interpelada de novo, fala: -- Chamo o papai, mamãe?
O balançar afirmativo da cabeça desvencilha Páscoa das teias de seus medos. À medida que retorna à cena, mais se apercebe da impossibilidade de não saber o quanto poderá poupar a filha do mal que ainda pode lhe causar.
-- Sim, faça isso.
A menina se afasta e Páscoa pede para Maria Luísa não comentar o que houve ali.
-- Melhor até deixarmos esse tema para conversarmos em outra ocasião.
A advogada estranha o pedido: será que são tão conservadores assim?

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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