terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Capítulo Dezenove

NA FRONTEIRA DO ILÍCITO


De novo, a manhã. Páscoa e Sofia se despedem da ama, que avisa que irá caminhar com elas. O impasse se apresenta e também a tentativa de dissolvê-lo.
-- Sofia, por favor, vá buscar as sombrinhas.
-- Mas pra quê? Estamos de chapéu!
-- Será melhor.
A menina obedece, mas para no alto da escada. De lá, vigia o que acontece. 
-- Venha, mas sem resmungar nem empacar no meio do caminho.
-- Vamos com um pé e voltamos no outro.
-- Com uma parada entre os dois, para além das pedras.
-- Não é o que tô pensando.
-- Pois então não pense.
-- Deixa o Capitão saber!
-- Não saberá, a menos que conte e, se contar, sabe o triste fim que terei.
-- Valei-me, Nossa Senhora e todos os orixás! Isso nunca.
-- Então não se oponha.
-- Mas filha minha, por um triz de nada, a gente escorrega no perigo.
-- Fique com seus medos que já tenho os meus. Se quiser vir, venha e me ajude a viver a luz desses breves dias.
-- Breves mesmo?
-- Mais longos que os da sua noite de Carnaval.
O rosto de Quitéria distende-se de assombro. Pensou que ninguém soubesse que ela e Tião haviam deixado o sobrado desguarnecido, para ver as brincadeiras do Zé Pereira na cidade.
-- O Capitão não pode saber!
-- Não saberá. Só falei pra você entender que eu também preciso de alegria.
-- Ó filha, o que me pede, ainda mais em véspera de Quaresma?
-- Por favor, Quitéria.
A ama hesita sem saber o que é pior, se minguar na reclusão sem ter provado a aventura do amor ou se sofrer as desventuras do proibido.
-- Que Oxalá nos proteja! Vamos.
Páscoa a abraça, agradecida, enquanto Sofia que, do alto da escada, já dava o passeio por perdido, entende que deve ir correndo buscar as sombrinhas. É o que faz, como um azougue.
Desse passeio em diante, Quitéria passa a esconder de Tião os detalhes de todos os outros. E conta diligentemente os dias para o fim da quarentena, com a expectativa de que o retorno da família para Botafogo a livre de suas omissões e a sua protegida dos tais breves dias.  Lá tudo será diferente, pensa, ora e vigia.
Qual não é seu desânimo quando Herculano decide postergar a estada no arraial, a despeito de Dr. Eugênio ter dado alta à paciente. Nem o início para breve das aulas de Sofia, lembrado por Quitéria, demove o patrão.
-- Isso pode esperar.
Tudo o mais, não. O que tem urgência para Herculano são seus compromissos na cidade e é inegável que aprecia a liberdade que desfruta durante a semana, sem ter que dar a menor satisfação dos seus horários em casa. Da mesma forma aprecia e quer prolongar um pouco mais a privacidade do casarão de Botafogo somente para si. Gosta do silêncio e precisa de reclusão para planejar cada passo da consecução dos objetivos patrióticos que enobrecem sua alma e com os quais está envolvido. A família fica.
Ao longo do novo período, as três passam a se encontrar com Grego também na casa dele. Sentadas à mesa da marcenaria, um puxado do imóvel, ouvem sobre o estrangeiro, companhias líricas, enredos de óperas, além de casos engraçados da vida.
Páscoa entende que somente o belo e o aprazível estimulam esse homem de olhar penetrante, modos calmos e à vontade com a sua natureza, vestido sempre com roupas leves e confortáveis. Política e poder jamais fariam sua alma vibrar. Tão diferente de Herculano! Começa a se ver no arranjo dessa existência, a imaginar como seria fazer parte dessa casa na curva do morro. Tudo em sonhos, em devaneios, porque no concreto, na realidade tangível, continua a trafegar em torno do desejo, no limite das sensações despertadas por essa aventura proibida. Esse é o seu deleite.
      O mesmo não ocorre com Grego. Está louco para ficar a sós com Páscoa, mas não consegue por causa da presença constante de Quitéria e Sofia, e ainda da falta de empenho dela própria para criar essa oportunidade. Incomoda-o também a percepção de que somente ele se revela, como se o único modo de conhecê-la fosse a partir do que ele tem a dizer. Páscoa pouco fala de si e desdobra o tema ouvido em novas perguntas que o fazem ficar, sempre, com a palavra. Quando dá por si, vê que falou o tempo todo e é hora das três partirem. Porém releva a questão: Não é fácil para uma mulher casada trocar confidências, menos ainda, lançar-se nos braços de outro homem. Assim, dança conforme a música. E assim transcorrem os dias pós-quarentena.


Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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