A NATUREZA VAZA
Herculano sai cedo e
voltará tarde. Logo depois, Tião também deixa o casarão, em companhia de
Quitéria e Sofia, que vai para a escola e o casal para as compras. Páscoa acena
da janela do quarto para a filha, com uma toalha a proteger os ombros dos
cabelos molhados. Afasta-se e surge, minutos depois, no quintal, onde se
penteia banhada de sol. Vê Azulão chegar, acompanhado de Belizária. Intui uma
mensagem a caminho no modo como o garoto a olha. Seu coração dispara. A criada
matraca qualquer coisa e se afasta. Um envelope voa da sacola do menino para as
mãos de Páscoa, que o deixa.
Atravessa o interior do
casarão com a novidade coberta pela toalha. Na escada, cruza com Belizária, que
carrega botas e sapatos. Percorre o corredor e entra no quarto. Sofregamente
abre o envelope. As fotos tiradas na cidade surgem e um bilhete se revela: Estou
de volta. Será uma grata satisfação rever a senhora. Pode vir a mim no Leme?
A longa espera
terminou. E Páscoa sobreviveu à ausência de Grego. Deslumbrada com a sua vitória,
deslumbra o seu desejo. Corre para o quarto de vestir ao lado. Quando se expõe
de novo ao olhar de Belizária, está bela e cheirosa. Carrega uma pequena bolsa
e usa um chapéu de aba ondulada, com os cabelos arredondados num coque.
Veste-se com um conjunto de duas peças, de tecido leve na cor salmão. Uma fita
estreita de veludo amarronzado debrua o decote da blusa e suas pontas deslizam
sobre os botões. A saia tem três camadas decrescentes embainhadas sinuosamente.
A mais longa, interna, cobre a calçola branca de pernas compridas e roça as
botinhas de cano curto. Uma diminuta rendinha orla as barras da peça íntima.
-- Vou visitar Maria
Luísa. Por favor, avise Quitéria e não me esperem para o almoço. Volto de
tarde, antes de o Capitão chegar.
Dá as costas para o
espanto intrigado da criada e sai. No vestíbulo, cobre-se com uma capa e leva a
mão à maçaneta da porta. Por um instante, permanece ali parada enquanto os
dedos se abrem e se fecham sobre a peça redonda de metal. Assegura-se do que está
prestes a fazer, gira a maçaneta e abre a porta. A claridade do dia lhe parece
ainda maior. Respira fundo e sai.
Em passos ligeiros,
caminha pela calçada. Na rua da praia, o desnorteio se expressa. Vira-se de um
lado para outro, sem saber o que fazer: se toma o bonde, que dá uma volta
enorme; se encara a pé a ladeira do Leme ou se pega um tílburi de aluguel na
porta do hospício. Ah, se tivesse um cavalo. A aproximação da condução,
que vem da Praia Vermelha, dissipa as dúvidas. Faz um sinal para o bonde e o
medo irrompe: e se Herculano estiver dentro? Pensa em correr. Será
reconhecida. Melhor enfrentar a possibilidade com a calma possível. O bonde
para. Embarca. Seus olhos percorrem de uma vez todo o espaço. Não corre perigo.
Aliviada, senta-se. O carro parte.
A praia da Saudade
reluz esparramada em seu encontro com as águas prateadas da enseada de
Botafogo. Tudo ondula e centelha lá e acolá. Água, terra e ar cintilam.
Integram o azul ao verde. Unem o belo ao exuberante. Os morros nunca se
mostraram tão lascivos. O Pão de Açúcar? Ah, esse nunca foi um pão! Ergue-se do
corpo do mar, como um falo, pronto para consumar o amor, com a nuvem branca que
o ronda deslizando suas plumas no azulado do céu. Que despudor!
Páscoa contempla essa
profusão de deslumbramentos, sentindo-se a própria Bovary. E todas as
adúlteras, apresentadas a ela pelo mundo das letras e das óperas, surgem como
uma miragem. Por entre os bancos do bonde, parecem desfilar e logo são
dissolvidas por um raio de sol. Melhor assim. Não quer companheiras de viagem
nem intrusos de espécie alguma. Agora é ela, com ela e por ela própria. Quer
dizer, com a sua natureza. Encontro marcado. O pensado, o planejado, com tanto
bom-senso, são ilhotas engolfadas pelo oceano das emoções. Páscoa alcançou o
seu limite. Não consegue mais abstrair, nem o instinto suporta abstrações.
Precisa do concreto, da ação. Num salto louco para o desejo, para a sua
rendição ou para a sua inovação, desafia a fatalidade. Chama a mudança do jeito
que dá conta de fazer. E a natureza vaza pelas frestas das leis dos homens.
Transgressão.
A Praça do Vigia
finalmente desponta. Após alguns minutos mais de torturante espera, o bonde
para no ponto final do Leme. Páscoa salta para a terra firme e caminha
apressada. Chega ao seu destino. Destranca em movimentos rápidos a pequena
tramela do portão, esquiva-se das saudações de Pã e corre rumo à porta
entreaberta.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright
de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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