sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Capítulo Quarenta e Oito

A NATUREZA VAZA


Herculano sai cedo e voltará tarde. Logo depois, Tião também deixa o casarão, em companhia de Quitéria e Sofia, que vai para a escola e o casal para as compras. Páscoa acena da janela do quarto para a filha, com uma toalha a proteger os ombros dos cabelos molhados. Afasta-se e surge, minutos depois, no quintal, onde se penteia banhada de sol. Vê Azulão chegar, acompanhado de Belizária. Intui uma mensagem a caminho no modo como o garoto a olha. Seu coração dispara. A criada matraca qualquer coisa e se afasta. Um envelope voa da sacola do menino para as mãos de Páscoa, que o deixa.
Atravessa o interior do casarão com a novidade coberta pela toalha. Na escada, cruza com Belizária, que carrega botas e sapatos. Percorre o corredor e entra no quarto. Sofregamente abre o envelope. As fotos tiradas na cidade surgem e um bilhete se revela: Estou de volta. Será uma grata satisfação rever a senhora. Pode vir a mim no Leme?
A longa espera terminou. E Páscoa sobreviveu à ausência de Grego. Deslumbrada com a sua vitória, deslumbra o seu desejo. Corre para o quarto de vestir ao lado. Quando se expõe de novo ao olhar de Belizária, está bela e cheirosa. Carrega uma pequena bolsa e usa um chapéu de aba ondulada, com os cabelos arredondados num coque. Veste-se com um conjunto de duas peças, de tecido leve na cor salmão. Uma fita estreita de veludo amarronzado debrua o decote da blusa e suas pontas deslizam sobre os botões. A saia tem três camadas decrescentes embainhadas sinuosamente. A mais longa, interna, cobre a calçola branca de pernas compridas e roça as botinhas de cano curto. Uma diminuta rendinha orla as barras da peça íntima.
-- Vou visitar Maria Luísa. Por favor, avise Quitéria e não me esperem para o almoço. Volto de tarde, antes de o Capitão chegar.
Dá as costas para o espanto intrigado da criada e sai. No vestíbulo, cobre-se com uma capa e leva a mão à maçaneta da porta. Por um instante, permanece ali parada enquanto os dedos se abrem e se fecham sobre a peça redonda de metal. Assegura-se do que está prestes a fazer, gira a maçaneta e abre a porta. A claridade do dia lhe parece ainda maior. Respira fundo e sai.
Em passos ligeiros, caminha pela calçada. Na rua da praia, o desnorteio se expressa. Vira-se de um lado para outro, sem saber o que fazer: se toma o bonde, que dá uma volta enorme; se encara a pé a ladeira do Leme ou se pega um tílburi de aluguel na porta do hospício. Ah, se tivesse um cavalo. A aproximação da condução, que vem da Praia Vermelha, dissipa as dúvidas. Faz um sinal para o bonde e o medo irrompe: e se Herculano estiver dentro? Pensa em correr. Será reconhecida. Melhor enfrentar a possibilidade com a calma possível. O bonde para. Embarca. Seus olhos percorrem de uma vez todo o espaço. Não corre perigo. Aliviada, senta-se. O carro parte.
A praia da Saudade reluz esparramada em seu encontro com as águas prateadas da enseada de Botafogo. Tudo ondula e centelha lá e acolá. Água, terra e ar cintilam. Integram o azul ao verde. Unem o belo ao exuberante. Os morros nunca se mostraram tão lascivos. O Pão de Açúcar? Ah, esse nunca foi um pão! Ergue-se do corpo do mar, como um falo, pronto para consumar o amor, com a nuvem branca que o ronda deslizando suas plumas no azulado do céu. Que despudor!
Páscoa contempla essa profusão de deslumbramentos, sentindo-se a própria Bovary. E todas as adúlteras, apresentadas a ela pelo mundo das letras e das óperas, surgem como uma miragem. Por entre os bancos do bonde, parecem desfilar e logo são dissolvidas por um raio de sol. Melhor assim. Não quer companheiras de viagem nem intrusos de espécie alguma. Agora é ela, com ela e por ela própria. Quer dizer, com a sua natureza. Encontro marcado. O pensado, o planejado, com tanto bom-senso, são ilhotas engolfadas pelo oceano das emoções. Páscoa alcançou o seu limite. Não consegue mais abstrair, nem o instinto suporta abstrações. Precisa do concreto, da ação. Num salto louco para o desejo, para a sua rendição ou para a sua inovação, desafia a fatalidade. Chama a mudança do jeito que dá conta de fazer. E a natureza vaza pelas frestas das leis dos homens. Transgressão.
A Praça do Vigia finalmente desponta. Após alguns minutos mais de torturante espera, o bonde para no ponto final do Leme. Páscoa salta para a terra firme e caminha apressada. Chega ao seu destino. Destranca em movimentos rápidos a pequena tramela do portão, esquiva-se das saudações de Pã e corre rumo à porta entreaberta.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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