terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Capítulo Cinquenta e Cinco

A SENSATEZ SE FEZ


Dias de concentrada quietude se sucedem com Páscoa a bordar quase o tempo todo. Evita pensar sobre a desairosa reação de Grego, macerar as razões do que ele fez e deixou de fazer. Quer preservar o vivido, manter a atenção em si mesma, na separação que precisa resolver. Porém a ansiedade maltrata, não dá paz. A família gravita ao redor. Quitéria sente-se aliviada com essa presença sem alarde e tenta compensar a dor que suspeita maltratar o coração ajuizado pela razão. Prepara para Páscoa banho com água cheirosa, cuida para que forre seu estômago com a prova de alguma iguaria, põe flores no vaso da sala, afasta o forro da cortina e só deixa o rendado puxado, para que o sol da tarde vaze e desenhe novas rendas no assoalho. É tão bonito! Quer mostrar-lhe tudo de bom que possui ao lado dos seus, na vida segura do casarão.
Sofia percebe a mudança na mãe. Por defesa própria, acomoda-se na nova maré e lhe dá o melhor de si. Não faz barulho em casa, borda em silêncio com ela, deixa um desenho debaixo do travesseiro e a abraça com carinho antes de ir dormir.
Herculano passa ao largo da diferença que nota e denomina como sendo uma resignação plácida. Sabe que está em falta à mesa de refeições, na sala de estar e no leito conjugal. Porém, justifica suas faltas com a probidade dos seus cuidados à saúde conjugal e de sua dedicação à causa patriótica.  
Belizária também ronda ao redor de Páscoa. Puxa conversa. Quer saber a razão da velha e quieta presença em casa, para se espantar ou se regozijar com a vida alheia. Sonda sobre José Inácio, que diz ser um partidão. Depois se abraça ao cabo de um esfregão e conta casos de amores selvagens, violentos, impossíveis. De corações que não têm dono e de outros traídos e enfurecidos. Mas nenhuma palavra consegue tirar da patroa, já perdida em imagem de sangue e agonia. E há a ronda de longe de Tião e em torno de Quitéria: -- cuide para que tudo fique assim. O mundo é cruel.
Páscoa percebe cada gesto de carinho, cada atenção dirigida. Esforça-se para responder com cordialidade, mas se inquieta em perceber como todos dependem de algum modo dela. Como se pode ser livre no amor?  
Maria Luísa a visita. Obtém uma rasa confidência, porém conclui que a sensatez se fez. -- Agora é aguardar o momento certo para pedir a separação, diz e reitera seu apoio à amiga. Logo mais, parte. Páscoa refugia-se no bordado. A pressão eclode. Livra-se do círculo limitado do bastidor, do riscado já definido, do motivo do bordado que pouco lhe fala neste momento. Busca um espaço onde possa livremente recriar em novas formas, novo sentido e nova cor o borbotão de sentimentos que a inundam. 
Grande é a surpresa de Sofia quando chega da escola e encontra a mãe debruçada sobre um lençol estendido no chão. Quer entender o riscado que ela faz.
-- Ali é o mar profundo, aqui uma grande onda com a sua crina de espumas e aqui... A arrebentação.
-- E as conchinhas?
-- Não sei se esse mar terá.
-- Mas o mar tem.
-- Sim, mas as conchinhas merecem um bordado só para elas.
Entendidas e estendidas sobre as possibilidades vislumbradas para o bordado, mãe e filha se entretêm. A triste quietude torna-se mais leve para uma e a doce receptividade traz segurança a outra. Sofia acha que a mãe desenha o mar para se curar outra vez.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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