A SENSATEZ SE FEZ
Dias
de concentrada quietude se sucedem com Páscoa a bordar quase o tempo todo.
Evita pensar sobre a desairosa reação de Grego, macerar as razões do que ele
fez e deixou de fazer. Quer preservar o vivido, manter a atenção em si mesma,
na separação que precisa resolver. Porém a ansiedade maltrata, não dá paz. A
família gravita ao redor. Quitéria sente-se aliviada com essa presença sem
alarde e tenta compensar a dor que suspeita maltratar o coração ajuizado pela
razão. Prepara para Páscoa banho com água cheirosa, cuida para que forre seu
estômago com a prova de alguma iguaria, põe flores no vaso da sala, afasta o
forro da cortina e só deixa o rendado puxado, para que o sol da tarde vaze e
desenhe novas rendas no assoalho. É tão
bonito! Quer mostrar-lhe tudo de bom que possui ao lado dos seus, na vida
segura do casarão.
Sofia
percebe a mudança na mãe. Por defesa própria, acomoda-se na nova maré e lhe dá
o melhor de si. Não faz barulho em casa, borda em silêncio com ela, deixa um
desenho debaixo do travesseiro e a abraça com carinho antes de ir dormir.
Herculano
passa ao largo da diferença que nota e denomina como sendo uma resignação
plácida. Sabe que está em falta à mesa de refeições, na sala de estar e no
leito conjugal. Porém, justifica suas faltas com a probidade dos seus cuidados
à saúde conjugal e de sua dedicação à causa patriótica.
Belizária
também ronda ao redor de Páscoa. Puxa conversa. Quer saber a razão da velha e
quieta presença em casa, para se espantar ou se regozijar com a vida alheia.
Sonda sobre José Inácio, que diz ser um partidão. Depois se abraça ao cabo de
um esfregão e conta casos de amores selvagens, violentos, impossíveis. De
corações que não têm dono e de outros traídos e enfurecidos. Mas nenhuma
palavra consegue tirar da patroa, já perdida em imagem de sangue e agonia. E há
a ronda de longe de Tião e em torno de Quitéria: -- cuide para que tudo fique
assim. O mundo é cruel.
Páscoa
percebe cada gesto de carinho, cada atenção dirigida. Esforça-se para responder
com cordialidade, mas se inquieta em perceber como todos dependem de algum modo
dela. Como se pode ser livre no amor?
Maria
Luísa a visita. Obtém uma rasa confidência, porém conclui que a sensatez se
fez. -- Agora é aguardar o momento certo para pedir a separação, diz e reitera
seu apoio à amiga. Logo mais, parte. Páscoa refugia-se no bordado. A pressão
eclode. Livra-se do círculo limitado do bastidor, do riscado já definido, do
motivo do bordado que pouco lhe fala neste momento. Busca um espaço onde possa
livremente recriar em novas formas, novo sentido e nova cor o borbotão de
sentimentos que a inundam.
Grande
é a surpresa de Sofia quando chega da escola e encontra a mãe debruçada sobre
um lençol estendido no chão. Quer entender o riscado que ela faz.
--
Ali é o mar profundo, aqui uma grande onda com a sua crina de espumas e aqui...
A arrebentação.
--
E as conchinhas?
--
Não sei se esse mar terá.
--
Mas o mar tem.
--
Sim, mas as conchinhas merecem um bordado só para elas.
Entendidas
e estendidas sobre as possibilidades vislumbradas para o bordado, mãe e filha
se entretêm. A triste quietude torna-se mais leve para uma e a doce
receptividade traz segurança a outra. Sofia acha que a mãe desenha o mar para
se curar outra vez.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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