REPÚBLICA
O
pequeno comboio cruza a Rua Lá Vai Um, segue adiante, dobra a esquina...
Páscoa mira a rua à frente, o portão e a porta do casarão de Botafogo. Está de
volta à realidade de sempre. Belizária surge para recebê-los. Magricela, olhar
entrão, cabelos assanhados e cambitos finos, cuida do serviço da casa, sob as
ordens de Quitéria.
O
movimento da chegada ocupa a residência. As janelas da sala avarandada são
abertas, baús levados para cima e cestas para a cozinha. Vozes dão ordens,
procuram objetos, orientam buscas e revelam achados. Parada ainda no vestíbulo,
em meio a esse vaivém, que sobe e desce escada, desaparece e reaparece vindo de
algum ponto da casa, Páscoa gira ao redor de si, com a sacola presa à mão e
apartes desnecessários. Dirige-se à biblioteca, onde encontra Herculano absorto
diante de um quadro soberano que reina em uma das paredes. Interrompido, diz
que precisa ir. Não é novidade para a esposa. O marido sempre precisa ir;
despede-se e ganha a rua.
Páscoa
olha para a tela, para a hierática figura feminina sentada em um trono. Cópia de
um óleo pintado para o governo, o quadro chegou com Herculano, que ali o
pendurou, em seu primeiro dia de casado. Causou impacto e intrigou a esposa: por que uma mulher se carrega o pecado de
Eva? Achou também fora de propósito aquela presença na casa nupcial.
Suspeitou que o marido conhecesse a retratada. Será?!
Não,
não era nada disso, como lhe explicou Herculano, a modelo de identidade
desconhecida cedera sua feição para representar o governo republicano
implantado no Brasil. Quem possuía condições para exercer tão nobre propósito?
Apenas a mulher, com a abnegação da sua força procriadora, com o altruísmo do
seu instinto maternal. O homem, não. Era ativo e egoísta. Por essa razão, a
figura feminina havia sido escolhida para guiar as brasileiras na formação e
manutenção da família nacional e inspirar a ação masculina na edificação de um
governo capaz de proteger a coletividade, sem distinção, como uma mãe faz com
seus filhos, sob a ordem do esposo, o chefe da família.
Páscoa
não se reconheceu nessa abnegação. Aspirava a um casamento não para servir a
pátria e sim para construir um aconchego, no qual o marido também a inspirasse
a ser uma mulher cada dia melhor e mais feliz com ele e com os filhos que
teriam.
Deixa
a sacola sobre a escrivaninha e caminha até a frente da República. O que
Herculano vê nesta mulher? Observa seus olhos: não fitam de frente e sim
quase de lado, como se mirassem o nada. Analisa as sobrancelhas:
arqueadas! Espantada? Não vê o espaldar do trono. Uma cadeira qualquer. Nota que a espada empunhada está parcialmente
coberta pelo manto. Impedida de ser usada rapidamente. Observa também que o pé desnudo
possui uma aparência humilde, até sujo. Uma pessoa do povo? Acha o lado
esquerdo do rosto mais sóbrio que o direito. Os lábios também. Aqui
parecem querer sorrir, já aqui, não.
A
imagem desconstruída lhe parece uma grande reticência: uma bela mulher
imobilizada numa incógnita e sem poder de fato, já que não está sentada em um
trono. Identifica uma sombra na tela. Efeito
do amarronzado do painel? Reconhece também uma luminosidade. Talvez
venha do vestido branco. Repara
nos seios bem delineados e no ondulado manso formado pelo tecido
que desliza sobre as pernas roliças. Analisa o braço estendido sobre o do
trono, com a mão pendida relaxadamente. Quanto equilíbrio! Que calmaria! Algo
mais lhe chama a atenção: o manto verde que cobre sinuosamente um lado do
corpo. Como uma serpente, conclui, intuindo a transgressão, como sombra
possível.
Não
identifica abnegação nesse ser, como dito por Herculano, mas sim a mulher modelada
conforme o que os costumes querem que ela seja – isenta de curiosidade e de
paixão, imobilizada pela submissão e adornada para acolher o homem em seu
corpo, como um lago sereno e nunca como o mar. Nessa imagem, a natureza domada
de Eva personifica a sociedade republicana – as afeições dos cidadãos sendo
submetidas às convenções e ao controle de uma lei criada artificialmente para
conter e disciplinar a lei natural dos instintos.
No
entanto, como alerta ou por descuido do pintor, a serpente-manto continua
enrodilhada no corpo republicano e talvez seja a explicação para a sombria
incógnita da República: como concretizar o aspirado pelos homens, se, como o
mar, os instintos até concedem ser recuados ou remodelados, mas, de fato, não
se rendem? Continuam a exercer a sua força, a se infiltrar como a água, a
abrasar como o calor, a corroer como a maresia e a irromper como os raios, as
ventanias e os vulcões.
Páscoa
se espanta por ter deixado escapar tantos detalhes. O que começou com um
simples olhar, avolumou-se numa visão ampliada para os próprios dilemas.
Impossível permanecer submissa às razões do que é permitido ou proibido pelos
costumes. Precisa de autonomia, para poder reduzir, até onde for possível, o
desequilíbrio entre anseios e possibilidades, aridez e satisfação, recato e
intimidade. Quer desvestir seus medos e desapontamentos, como fez com a
República. Quer revelar sua natureza. Aprender de uma vez a lidar com o seu
próprio perigo em liberdade.
Afasta-se
do quadro e retira da sacola a concha. Ergue-a até o ouvido e ouve o som do
mar. Solta um suspiro forte. Dirige-se para a sala ao lado onde guarda o objeto
no fundo da cesta de bordados, que está sempre sobre o tapete, ao pé da quina
do sofá.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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