terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Capítulo Dezoito

DA VONTADE LIVRE


Os gritos alegres de Sofia vibram na praia. O sol se eleva por detrás do morro, que cobre de sombra fresca o novo território pelo qual Páscoa se move chapinhando na água. O bem-estar brota da sola dos pés descalços, sobe pelas pernas, redemoinha no ventre e segue em carreira para o coração que bombeia a tensão de transgredir e a excitação de viver o prazer. 
Páscoa observa o cuidado com que Grego guia Sofia em sua descoberta do mar e admira também a coragem da filha. Ora a pequena dá as costas à passagem da onda e é jogada nos braços do banhista, onde se acomoda como se tivesse crescido entre eles, ora cai solapada pela turbulência da arrebentação – e é agarrada pela mão rápida de Grego. Tesa e cega de água e sal, Sofia respira e se inteira de si. Deixar o mar? Que nada! Visão e fôlego recuperados, segurança firmada, quer mais. E se lança em nova brincadeira, com Pã, que nada ao redor.
Páscoa escuta a alegria que vem de lá e a que seu corpo murmura. Sofia nunca esteve tão feliz e ela nunca se sentiu tão bem. Esse sentir vale o risco. É crueldade privar alguém do prazer. Um mínimo de felicidade precisa ser vivido. E assim é. Nesta manhã pagã, em que todos parecem dormir até mais tarde, o abre-alas da liberdade ganha passagem, une-se do mar à terra e desfila cheio de novas claridades.
Sofia seca-se entre corridas com Pã, enquanto Páscoa e Grego palmilham a praia do conhecimento.
-- O que trouxe o senhor para o Rio?
-- Uma companhia de teatro lírico contratou meus serviços e o Brasil estava no roteiro das apresentações.
O tipo de contratação intriga a mulher.
-- Serviço de banhista?
-- Não. Reparo instrumentos de cordas e também faço violinos. Sou um luthier.
Páscoa entende onde aquelas mãos aprenderam a pegar com delicadeza e precisão. 
-- Nunca conheci um artesão da música.
-- Ao vosso dispor.
Encabulada, desvia o olhar. Grego percebe o decoro e se revela um pouco mais.
-- Gosto muito de madeira e também de observar e extrair o som de cada coisa. Daí para juntar os dois gostos foi um pulo só.
-- Possui belos dons.
-- Obrigado. Acho que os homens são como árvores. O lenho de cada um é próprio para fazer uma coisa e não outra. Descobri cedo qual era o meu.
-- Que boa fortuna!
-- Foi sim. Pôs no meu caminho um mestre que me ensinou dar bom uso aos meus dons. Abandonei os costumes – há muito os homens da minha família são comerciantes dos mares. Aí uni a vida com o destino: o rumo com a oportunidade, entende?
-- Entendo, responde, ignorante de como realizar essa fascinante operação.
-- De Atenas fui para Paris estudar o ofício, depois aprimorei a arte em Cremona, na Itália. Aprendi muito, trabalhei bastante, mas sentia que lá não era o meu porto. Aconteceu então o convite da companhia e aqui aportei. Fiquei encantado com esta enseada e entendi o que o destino me acenava. Escolhi a ponta de praia para construir minha casa. Moro logo ali, ao pé da curva do morro, onde tenho minha luteraria. Trabalho para os músicos da cidade e para os de fora que chegam.
-- Acha que encontrou o seu porto?
-- Agora mais que nunca.
A emoção fervilha em Páscoa. Volve o rosto para o mar e percebe a nulidade do recato. Um sonho deve ser vivido na sua instantânea duração. Tateia no desbravamento do outro, pressionada por uma pergunta que não quer se calar.
-- Trouxe sua família também para cá?
-- Não. De lá eles não saem. São muito apegados. 
-- Sei... O senhor é casado?
A curiosidade nua o surpreende.
-- Sou solteiro.
Como um vento forte que abre a janela, Páscoa escancara aquela nudez.
-- Nunca amou?
É o verbo feito carne, conclui Grego, observando os olhos negros amendoados. Julga arriscado deixá-los sem resposta. Mas como dizer o que não se diz, sobretudo quando se faz a corte a uma mulher casada? Escolhe sua melhor saída.
-- O amor tem me escapado.
-- Como assim?
Grego teme dizer mais, ainda que aquele olhar insista em atrair seus segredos.
-- Ora...
-- O amor não permite ligar vida ao destino?
-- Permite, mas, às vezes, é arrebatador. Passa como vento. Ou, frágil, se esvai como o aroma de um perfume. Ou é tão difícil que finda, até que outro surja com novas promessas de eternidade, conclui Grego, estupefato consigo mesmo. O que tem esta mulher, que me extrai uma confidência dessas?
Páscoa experimenta uma sensação ambivalente. Ao mesmo tempo em que a resposta a desconcertou, pelo número de amores revelados, gostou de saber, de uma só vez, a verdade desse ser: um homem de sentimentos fartos. Retomado o controle, quer entender melhor essa volubilidade que desafia suas crenças românticas.
-- Se há sempre uma dificuldade e um fim tão certos, não parece sem sentido entregar-se ao amor?
-- Evitar suas dores é deixar de viver suas alegrias. Não compensa. O amor é uma dádiva da vida. Transforma o que toca.
A declaração remexe os sentimentos mais íntimos de Páscoa. Traz à tona o abandono de si, dá sentido à sua cura e incita o desejo, ainda que proibido, de usufruir da dádiva do amor. Na força do tumulto, na tensão criada entre a vontade e a negação, ignora tudo o que poderia desviá-la de acreditar no faz-de-conta que são possíveis um para o outro. Quer desfrutar esse deleite nem que seja como uma pintura, que se aprecia sem tocar. Ousa dizer:
-- O amor lhe cai bem.
-- Também à senhora.
Encalorada do decoro que confronta, Páscoa aprofunda o entendimento.
-- Descreveu-me tantas formas de amar. Qual acha que melhor me assenta?
-- A que lhe apraz e revele por inteiro o seu coração.
Ah, a ilusão da vontade livre!
O olhar amendoado como um lago negro rutilante espelha o outro, rasgado de desejo. Grego toma-lhe a mão.
-- A senhora é muito bela.
-- Possui olhos sensíveis.
A vontade do homem é abraçar a mulher, mas a ocasião não é propícia. Nem a mão se mantém onde estava, escapa suavemente, e Páscoa volta a andar. Grego a segue, no mesmo ritmo, cheio de atenções e respondendo a todas as suas curiosidades.
-- Por que um artesão da música é também um banhista?
-- Para renovar a vida.
Páscoa compreende. Realmente está diante de um artesão do prazer.
-- Nunca teme o mar?
-- Sim. Ele é igual à gente. Tem humor e simpatias. Às vezes, claras e rápidas, às vezes, demoradas e suspeitas.
-- Como lida com tanta inconstância e perigo?
-- Respeitando o seu modo de ser. É da natureza do mar ser assim – e contra a natureza não há como lutar.
Quando Páscoa cruza a fronteira de volta, com uma Sofia falante, toda sal, areia e alegria, as palavras de Grego ainda ecoam turbulentas por dentro: Contra a natureza não há como lutar. Impossível pôr um ponto final nessas manhãs luminosas. Quer rever, conhecer melhor esse homem que lhe surgiu como um bálsamo de frescor na alma machucada e que parece incitá-la a livrar-se dos seus medos, a conquistar sua liberdade e a ouvir seu coração. Quer compartilhar suas certezas, descobrir com ele como se entender com a sua natureza, como ligar a vida ao destino. Olha para as grandes pedras negras – um quase nada que a separa do território onde seus desejos podem ser concretizados. Com essa imagem já íntima, passa pelo portão do sobrado com Sofia e segue para o quintal. 
     Tião e Quitéria vêm ao encontro delas. A areia grudada nos cabelos da menina e a roupa ainda úmida chamam a atenção. Indiferentes à ladainha de perguntas da ama, mãe e filha chegam ao poço, onde um balde cheio de água está. A princípio, Páscoa molha o rosto, mas, depois, abrasada de diferentes calores, entorna a água sobre si. O corpo quente se arrepia – e a decisão brilha. Arriscará. Quer avançar pelo novo território do modo que melhor lhe convier e até aonde puder. Sofia também quer se molhar. Por que não? Páscoa enche o balde e molha a filha. Boquiabertos, Tião e Quitéria assistem ao aparente desvario da cura. A dúvida nasce em Quitéria. 


Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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