sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Capítulo Trinta e Seis

EM BUSCA DA RECEITA DA FELICIDADE


O livro é escondido debaixo da concha, no fundo da cesta de bordados, que está sempre disposta sobre o tapete, ao pé da quina do sofá, na sala de estar.
Ao longo do fim de semana, Páscoa borda quase todo o tempo. A cesta mais parece um ponto luminoso sobre o alto mar. Suspensa por uma onda ilumina o riscado dos motivos bordados na fina trama contida pelo círculo do bastidor. A bordadeira se vê então com Grego num navio, a caminho de mundos novos. Mas a vaga passa, o ponto de luz fica para trás... E a bordadeira se situa novamente na sua realidade.
Na segunda-feira, as janelas do casarão são abertas para a arrumação. Há muito a ser feito com Concheta e Piedade: essa a recolher as roupas para lavar, aquela aposta na limpeza dos quartos, com Belizária e Quitéria.
A patroa se fecha na sala de estar. Retira o romance da cesta de bordados, após acariciar a concha, e acomoda-se com Madame Bovary no sofá. Abre o livro pelo final e, pouco a pouco, libera todas as páginas apenas para saborear as inúmeras descobertas ao seu alcance. Durante o movimento, o bilhete de Grego se revela entre as folhas. Um sorriso se abre à medida que lê o convite para a despedida no Jardim Botânico. A alegria entorpece o juízo e floresce o prazer de se sentir desejada.
Erotizada por essa promessa de aventura, Páscoa começa a desbravar a de Emma Bovary. Já nas primeiras páginas, a leitura a arrebata pelas semelhanças de suas vidas. Órfã também de mãe, criada numa escola-convento, a personagem casou-se cheia de esperanças e desejou ter um filho que desbravasse por ela o mundo. Mudam-se as paisagens e os rostos, no entanto, os desejos pouco se distinguem nos corpos diferentes que os ocultam, reflete Páscoa. Porém, o que mais lhe prende a atenção é saber o que Bovary fará com a sua insípida realidade conjugal; como romperá a própria angustiante imobilidade que a impede de buscar a felicidade aspirada. Palmilha essa trajetória em busca de inspirações para dar conta da sua própria aventura. Mais do que isso. Almeja que o livro seja um manual como o que vem junto com os motivos dos bordados que compra e que lhe indica cores, linhas e pontos para produzir belezas que a reconfortam.
Durante esse desbravamento, compreende a aragem fresca que a chegada de Léon traz à vida da personagem, e delicia-se com a companhia do jovem, como se fosse ela própria a palpitar sob a roupa que cobre Bovary.
O batalhão de limpeza invade a sala. Quitéria resmunga:
-- Tá lendo? O médico não proibiu?
-- Bobagem, retruca e se refugia na biblioteca.
À escrivaninha de Herculano, compartilha a tristeza de Emma quando Léon parte para outra cidade, sem se declarar, e se espanta com o comentário do autor de que, em vez de afastar os pensamentos que a faziam sofrer, Bovary se prendia a eles, excitando-se na dor. Como alguém pode extrair prazer do sofrimento? Que declaração infeliz! Incomodada, prossegue a leitura, que lhe apresenta Rodolphe. Desgosta dele tão logo percebe sua falta de decoro, por se valer de verdades para seduzir Bovary.
-- Não se sente revoltada contra a conjuração da sociedade? Existirá um único sentimento que ela não condene? Os instintos mais nobres, as simpatias mais puras, são perseguidos, caluniados! E, se, afinal, duas pobres almas se encontram, tudo está organizado de tal maneira que não possam se unir. Tentarão, apesar de tudo; agitarão as asas, chamar-se-ão uma a outra e, mais cedo ou mais tarde, reunir-se-ão e amar-se-ão porque a fatalidade assim o exige, pois nasceram uma para a outra.
O medo da conjuração da sociedade pressiona o peito de Páscoa e se avoluma com novas reflexões desconcertantes.
-- Não sabe a senhora que existem almas constantemente atormentadas? Precisam alternadamente de sonho e de ação, das paixões mais puras e dos gozos mais intensos, lançando-se assim a toda espécie de fantasias, de loucuras.
Páscoa se reconhece nessas almas. Assombrada, segue o casal. Testemunha a entrega de Bovary. A arrumação alcança a biblioteca e a leva a se recolher no quarto. Um novo tempo começa. À medida que Emma se embaraça cada vez mais em dívidas para desfrutar o êxtase do amor, cercada também de luxo, o coração de Páscoa bate mais descompassado com o dela. Quer um percurso diferente, que Emma não cometa imprudências financeiras que não terá como arcar com as consequências. Mas nada detém Bovary. Sem dar conta que desafia a fatalidade, voa nas alturas luminosas de seus anseios, onde tudo lhe parece possível. Limite. Equilíbrio. Calafrio! Páscoa salta do corpo de Emma num pulo ajudado também pela entrada de Quitéria.
-- Deixa o Capitão chegar e pegar você lendo... É confusão o que quer?
Fecha o livro; tem que concordar com a ama. Continuará a leitura depois.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


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