terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Capítulo Dezessete

TRILHAS!


O mar está azul, azul, e bravo. Vagas gordas, grandes, se levantam, quebram-se pesadas e esparramam-se agitadas sobre a areia. Cautelosas, Páscoa e Sofia caminham por ali. Nunca estiveram próximas de um mar tão bravo assim. Mas o sol está tão brilhante, a areia tão firme, a própria braveza do mar é tão bela, que dão de ombros a esse rompante. É um mal-estar passageiro, acham. E, para encorajá-las a prosseguir nessa vizinhança, há ainda as conchas que descobrem e recolhem encantadas. Pequenas ou grandes, abertas ou espiraladas, rosadas, carameladas ou brancas, estendem-se pela areia afora, como um colar comprido de contas esparsas. Até parece uma trilha, pensa Páscoa. Daí em diante, tudo acontece muito depressa: a mãe pede para a filha deixar na praia as preciosidades coletadas e ir correndo ver algo com ela. A menina fica insegura.
-- Vão sumir!
-- Não vão, não. Pegamos tudo depois.
As conchas são retiradas apressadamente do avental da garota e postas no chão. Em passos rápidos, as duas caminham. Ao longo do percurso, os olhos passeiam entre as novas descobertas sobre a areia e a pedreira negra que se aproxima. Até que a mais bela concha é vista apoiada na base da pedra e vulnerável ao humor caprichoso do mar. Páscoa aguarda o recuo das águas espumantes e, num impulso, recolhe a concha e cruza a fronteira, puxando Sofia pela mão.
Mal os pés pisam a areia seca do outro lado, o espaço ultrapassado é tomado por nova onda. Mãe e filha viram o rosto para trás, avaliando o perigo vencido. Quando os desviram na direção do areal, são surpreendidas pelo banhista, parado a poucos braços de distância, com Pã ao lado.
Nesse primeiro instante, os olhos do homem e da mulher não se desgrudam um do outro. Páscoa reconhece, no corpo sem bravatas que a acolheu, vestido dessa vez com uma roupa clara e leve, a mesma disponibilidade para oferecer na terra o bem que lhe ofertou no mar. O banhista se inteira da leveza arredondada e macia que teve em seus braços, exalando agora brilho e cor, e trazendo junto ao peito, que arfou em uníssono com o seu, a concha resgatada. Sofia aguarda, ressabiada diante da emoção que, de algum modo, lhe cheira um perigo qualquer.
O banhista libera Pã da coleira e o cão fareja as visitantes. A menina arrisca um carinho no cachorro, que a lambe. Sorrisos se abrem. O homem lança um graveto. Pã corre e volta com o objeto preso aos dentes. Sofia também o arremessa e, de lançamento em lançamento, se distancia, deixando a mãe e o banhista bem para trás.
-- É muito bom ver a senhora tão bem.
Um sorriso é a resposta e nova indagação quebra o silêncio.
-- Gosta de conchas?
-- Muito. Nunca vi uma tão linda quanto esta.
A voz, até então desconhecida, enche os ouvidos do banhista. É voz de diva, pensa e imagina toda a praia como um palco, no qual Páscoa surge banhada de luz, cantando em êxtase a dissonante dor do mundo.
-- Como o senhor se chama?
-- Nikos Andreadis, responde despertado do devaneio.
-- É um nome...
-- Grego, como todos me chamam por aqui. Nasci em Atenas
Páscoa se encanta com a origem desse novo mundo que contempla: devo contar que meu pai era de Cádiz, um estrangeiro como ele? Ou perguntar: o que o trouxe de tão longe, Sr. Andreadis? Ou apenas agradecer. Obrigada, Grego, pelo bem que me fez. Quis muito vê-lo de novo e pedir para levar minha filha ao banho de mar.
Tanta indecisão e reserva não disfarça o que já nasceu íntimo.
-- Chamo-me Páscoa Mourão Dias.
-- Páscoa... Que nome lindo, sonoro. Nasceu nessa data?
-- Sim, diz e se cala.
Não quer contar a verdadeira razão do seu nome: a homenagem do pai à esposa fervorosa, que morreu num domingo pascal, dias após o parto. Nem quer que Grego saiba o ponto de partida do seu mal: a vida trocada pela morte. Ou que se aperceba de que, durante este instante mágico que vivem, outras trocas do destino podem estar acontecendo. Não. Não quer turvar com nenhuma sombra a alegria que sente. E tem pressa, o tempo urge. Talvez Quitéria e Tião já tenham percebido sua ausência na praia do arraial. Não pode adiar o que quer pedir.
-- Pode levar a minha filha ao mar?
-- A menina está tão bem, comenta surpreso com o pedido.
-- Quero dar-lhe a alegria de brincar na água.
-- Será uma honra. Levarei a menina... E também a senhora, sempre que desejar.
Páscoa saboreia a perspectiva do “sempre que desejar”. Sabe que a liberdade de viver um desejo é um bem raro e finito, que se esvairá após viver o risco que se dispõe a correr para presentear Sofia, e também a si própria, com um pouco mais de prazer. Anuncia a partida.
-- Preciso ir.
-- Que pena não poder ficar. Gostaria de acompanhá-la. Mas sabe que não posso.
A fala oficializa a transgressão em curso. Páscoa enrubesce e chama a filha. Grego percebe a inquietude e desencadeia outra emoção quando pega a concha e a ergue junto ao ouvido dela. Sorri ao ouvir a exclamação:
-- O som do mar!
-- Para estar sempre com a senhora.
Os olhos navegam no mistério um do outro, até que a menina chega. A concha é devolvida e o melhor caminho de volta pensado.
-- Não preferem contornar as pedras pelo alto da praia?
-- Ah, não! Lá não tem graça, não tem ondas, protesta Sofia.
Páscoa também deseja refazer o mesmo caminho, sentir que retorna pela fronteira atravessada. Acompanha a dianteira tomada pela filha e Grego as segue. Perto das pedras, fitam o recuo das águas.
-- Agora! Vão.
Páscoa e Sofia correm. Espumantes, as águas tomam o espaço atravessado, enquanto o corpo de mãe se vira para trás, num último adeus. Afasta-se, puxada pela mão da filha, que deseja recolher as preciosidades deixadas na praia. De concha em concha recolhida, as duas trilham o retorno.
-- Amanhã vamos pegar mais, não vamos?
Páscoa hesita ante a resposta que quer dar. Vence o medo.
-- Vamos, sim. E, se quiser, poderá também brincar no mar.
Espantada, a pequena para de andar.
-- Com o banhista?
-- Com o senhor Nikos. E eu acompanharei vocês da praia.
-- Mas eu não estou doente!
-- Melhor, poderá aproveitar ainda mais.
-- E o sono do mar?
-- Não vai acontecer. Você é uma menina forte. Quer?
-- Papai vai deixar?
Um tremor agita Páscoa.
-- Melhor ele não saber nem sobre hoje, nem sobre amanhã.
Sofia entende a razão. O banho de mar às avessas tornou o banhista um desafeto do pai. Sente-se dividida entre a obediência filial e a atraente proposta. Páscoa percebe a insegurança.
-- Se quiser, não precisa ir. Mas acho que irá gostar.
Temendo decepcionar a mãe e perder a oportunidade de brincar no mar, decide.
-- Eu vou e não conto nada para ninguém.
-- Nem para Quitéria. Promete?
-- Prometo.
-- Amanhã terá a melhor brincadeira do mundo, diz e afaga o rosto da filha.
Tudo é muito para Sofia: o afago, o segredo, as perspectivas do amanhã. E a menina assume ali outro compromisso e dessa vez consigo mesma: de jamais contar nada da sua mãe para ninguém e de fazer o que estiver ao seu alcance para tê-la sempre assim, amorosa do jeito que está.
      Tudo também é muito para Páscoa. Pediu para Sofia transgredir a lei paterna de nada omitir, para satisfazer o desejo de proporcionar a ela a descoberta do prazer do mar. Mas como fazer diferente, se é no espaço mínimo que se move e é nesse espaço reduzido que Sofia também deverá aprender a se mover? Empurra para os cantos de si o medo de ser a perdição da filha e caminha carregando a certeza do que quer fazer. 


Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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