O QUE FOR SOARÁ
Manoel do Porto anda quieto ultimamente.
Retornou para a venda fundada pelo pai à Rua do Mercado e administrada pelo seu
primogênito. O nome Todos Os Santos recebeu
o adendo Filhos e Filiais após a
morte do fundador, que veio de Portugal com a família, quando Manoel era
menino. O negócio cresceu e se ampliou para o recém-perdido ponto no centro da
cidade. Os filhos, três rapazes entre quinze e vinte poucos anos, atendem nesse
momento a freguesia ao som da ruma dos seus tamancos. Nos fundos, numa cadeira
e ao balcão, como estátua em pedestal, a esposa Joaquina, com o cabelo preso em
coque, trajando vestido preto e um crucifixo de ouro sobre o peito, policia as
vendas, com o caderno do armazém na mão e um lápis preso à orelha.
O imóvel passou por uma reforma recente para
se adequar às exigências do Código Sanitário. Paredes foram caiadas de branco,
prateleiras limpas e envernizadas, e um monte de tudo reorganizado, entre secos
e molhados, comestíveis ou não.
Pelos fundos da venda, chega-se ao quintal e
à casa, onde Manoel se casou e os filhos nasceram. Ali, enquadrado pela janela
da sala, o comerciante pode ser visto, de camisolão, tamancas, barba por fazer
e numa inatividade que preocupa a família.
Manoel praguejou, rebanhou os amigos para
buscar em conjunto o auxílio da lei. Jurou sair no braço, caso suas perdas não
fossem ressarcidas pelo governo. Contudo, com a lentidão da justiça, a fúria
empedrou e o imobilizou. Como seu santo protetor, que morreu alvejado por
flechas, ao lutar pela liberdade da fé, sente-se lancetado pelo infortúnio e
nos mesmos órgãos: no coração, sofre a dilaceração causada pela perda das suas
propriedades; na cabeça, a dor de não saber como esfolar os responsáveis pelo
seu prejuízo. Porém, diferente da expressão de São Manuel, cunhada na medalha
assentada no peito do português, seu olhar não fita o céu, com olhinhos
revirados de santidade resignada. Seu olhar exala ódio.
Fortunado atravessa o quintal e acotovela-se
no parapeito da janela. O conhecido, aparentado do finado padrasto, não se
mexe.
-- O que te passas, Manoel?
-- O que tu vês. Estou a pensar.
-- Por que não atrás do balcão?
-- A mulher está lá.
-- Mas aquele é o teu lugar.
-- Há coisas que só um homem pode fazer e cá
estou a queimar as pestanas para saber como arrancar do peito as flechas do
destino.
-- Ah, bom. É disso que venho falar.
-- Estou a ouvir.
-- Há um plano para unir a força do povo e
rebelar contra o governo.
O olhar de Manoel brilha.
-- Que gajo tá metido nisso?
-- Um tanto de militar, jornalista e
operário, e uns políticos também. A ideia é ir para a rua e exigir a renúncia
do presidente. Tem mais coisa pra acertar e o grupo precisa de apoio. Então, o
que dizes?
-- Se foi fácil banir um rei bom, fácil será
tirar um vira-casaca de merda.
-- Tem lá suas dificuldades, mas ao cabo de
tudo, é a rebelião que sobra. Meu intento é unir os conhecidos e apoiar um
capitão. Alguns meses ele está a palestrar comigo e com um grupo de obreiros. O
homem tem fibra e preparo.
-- A terra clama à ira divina – e Deus exalta
o braço corajoso.
-- Que pode ser valente de muitos modos.
Sabes que não fio em revolução pronta e acabada, mas na rotineira, feita pela
cooperação entre homens livres.
-- O que te dá cuidados para disser isso?
-- Clareza dos intentos. O capitão precisa de
dinheiro para pôr de imediato uma tropa de não fardados na rua. Conforme o
andar da carruagem, ele vai explicando o que fazer e a gente se entendendo em
como ajudar. Se o governo cair, tá bom; se só levar um susto, tá bom também.
Algo já será surrupiado da sua tirania infernal. É assim que eu vejo a
situação. O que tu achas?
-- Vale a fava se não tem a ervilha. O que
for soará.
Copyright © 2013
by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema
e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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