sábado, 20 de junho de 2015

Capítulo Noventa e Dois

O QUE FOR SOARÁ


Manoel do Porto anda quieto ultimamente. Retornou para a venda fundada pelo pai à Rua do Mercado e administrada pelo seu primogênito. O nome Todos Os Santos recebeu o adendo Filhos e Filiais após a morte do fundador, que veio de Portugal com a família, quando Manoel era menino. O negócio cresceu e se ampliou para o recém-perdido ponto no centro da cidade. Os filhos, três rapazes entre quinze e vinte poucos anos, atendem nesse momento a freguesia ao som da ruma dos seus tamancos. Nos fundos, numa cadeira e ao balcão, como estátua em pedestal, a esposa Joaquina, com o cabelo preso em coque, trajando vestido preto e um crucifixo de ouro sobre o peito, policia as vendas, com o caderno do armazém na mão e um lápis preso à orelha.
O imóvel passou por uma reforma recente para se adequar às exigências do Código Sanitário. Paredes foram caiadas de branco, prateleiras limpas e envernizadas, e um monte de tudo reorganizado, entre secos e molhados, comestíveis ou não.  
Pelos fundos da venda, chega-se ao quintal e à casa, onde Manoel se casou e os filhos nasceram. Ali, enquadrado pela janela da sala, o comerciante pode ser visto, de camisolão, tamancas, barba por fazer e numa inatividade que preocupa a família.
Manoel praguejou, rebanhou os amigos para buscar em conjunto o auxílio da lei. Jurou sair no braço, caso suas perdas não fossem ressarcidas pelo governo. Contudo, com a lentidão da justiça, a fúria empedrou e o imobilizou. Como seu santo protetor, que morreu alvejado por flechas, ao lutar pela liberdade da fé, sente-se lancetado pelo infortúnio e nos mesmos órgãos: no coração, sofre a dilaceração causada pela perda das suas propriedades; na cabeça, a dor de não saber como esfolar os responsáveis pelo seu prejuízo. Porém, diferente da expressão de São Manuel, cunhada na medalha assentada no peito do português, seu olhar não fita o céu, com olhinhos revirados de santidade resignada. Seu olhar exala ódio.
Fortunado atravessa o quintal e acotovela-se no parapeito da janela. O conhecido, aparentado do finado padrasto, não se mexe.
-- O que te passas, Manoel?
-- O que tu vês. Estou a pensar.
-- Por que não atrás do balcão?
-- A mulher está lá.
-- Mas aquele é o teu lugar.
-- Há coisas que só um homem pode fazer e cá estou a queimar as pestanas para saber como arrancar do peito as flechas do destino.
-- Ah, bom. É disso que venho falar.
-- Estou a ouvir.
-- Há um plano para unir a força do povo e rebelar contra o governo.
O olhar de Manoel brilha.
-- Que gajo tá metido nisso?
-- Um tanto de militar, jornalista e operário, e uns políticos também. A ideia é ir para a rua e exigir a renúncia do presidente. Tem mais coisa pra acertar e o grupo precisa de apoio. Então, o que dizes?
-- Se foi fácil banir um rei bom, fácil será tirar um vira-casaca de merda.
-- Tem lá suas dificuldades, mas ao cabo de tudo, é a rebelião que sobra. Meu intento é unir os conhecidos e apoiar um capitão. Alguns meses ele está a palestrar comigo e com um grupo de obreiros. O homem tem fibra e preparo. 
-- A terra clama à ira divina – e Deus exalta o braço corajoso.
-- Que pode ser valente de muitos modos. Sabes que não fio em revolução pronta e acabada, mas na rotineira, feita pela cooperação entre homens livres.
-- O que te dá cuidados para disser isso?
-- Clareza dos intentos. O capitão precisa de dinheiro para pôr de imediato uma tropa de não fardados na rua. Conforme o andar da carruagem, ele vai explicando o que fazer e a gente se entendendo em como ajudar. Se o governo cair, tá bom; se só levar um susto, tá bom também. Algo já será surrupiado da sua tirania infernal. É assim que eu vejo a situação. O que tu achas?
-- Vale a fava se não tem a ervilha. O que for soará.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


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