terça-feira, 30 de junho de 2015

Cento e Quatro

O ESTOMPIM DA REVOLTA


Enquanto políticos celebram a aprovação da vacina, na Casa Rosada, Theodoro penetra os aposentos de Ninon e a encontra à escrivaninha a conferir contas do negócio.
-- Já devo descer?
-- Advinha quem está aí?
-- O presidente!
-- Valentin. Mande vinho, ópio e alguém para fazer companhia pra ele. Está lá no aposento reservado. Tem um cartão?
Ninon abre uma gaveta; Theodoro vê no interior algo que lhe interessa.
-- Posso ficar com isso?
Ninon ri do interesse despertado pelo seu porta-níquel de veludo. Retira o objeto e o cartão solicitado e lhe entrega. Saudações escritas, Theodoro dá a ela o bilhete.
-- Faça chegar até Valentin e o segure lá.
-- Tentarei fazer o melhor.

*

A aprovação da Lei da Vacina traz de Minas Gerais o barão Campos Altos, que aconselha cautela ao filho.
-- Afaste-se das reuniões. A hora é de ação nos bastidores.
-- Preciso estar presente para defender nossos interesses.
-- Pinto de Andrade o fará.
-- Um acautelamento como esse pode me alijar do movimento.
-- E lhe dar o álibi de que é um apoiador da livre-expressão, se algo der errado.
-- Covardia não me credencia no novo governo.
-- Tolice! Entramos com a bufunfa e Sodré tem um pacto firmado conosco. Em todo caso, amanhã mesmo, eu falo com Ouro Preto sobre esse ponto.
-- Penso em ir para São Paulo ouvir Leopoldino quanto aos próximos passos. 
-- Isso sim. Aproveita a estada e visita também Aureliano. Tem se revelado um estremado apoiador e a ocasião é oportuna para estreitar os laços com a jovem Eufrásia. Faça a corte e eu acerto o casório.
-- Prefiro pensar em matrimônio quando tiver clareza do meu futuro.
-- Por causa de apreensões tolas deixa escapar o que tem na mão?
-- Apenas quero organizar melhor a minha vida. Mal cheguei do exterior.
-- Casar faz parte dessa organização. A República é paulista e nossa família precisa enraizar-se lá. Agarre essa oportunidade de ter uma esposa rica e um sogro influente. Tudo o mais se resolve depois.  

*

Fabrício não comparece à reunião do levante. Sua ausência é justificada por Pinto de Andrade: -- teve de ir pra São Paulo. Os demais não se detêm no assunto e iniciam as deliberações sobre as próximas ações, pós-aprovação da vacina.
-- Já é hora de convocar o povo para a luta, diz Varela.
Vicente de Souza, em noite de estreia no grupo, fica alarmado.
-- Melhor não. Pode assustar a população ordeira, pondera.
-- Pois vamos transformar o medo em coragem.
-- Isso só dando razões pessoais para o combate, pondera Herculano. -- Que homem não pensaria em pegar em armas se a filha ou esposa tivesse que se desnudar para um estranho?
-- Há o decoro, mas chamar de desnudamento o mero levantar de uma manga, parece-me algo demasiado, comenta Agostinho.
-- Não, se a vacina for aplicada em outra região do corpo.
-- O que não será.
-- Pode haver uma versão que diga que sim.
Brito se constrange com a proposta. Fita Herculano e mais tarde, o questiona.
-- Isso é manipulação. Não estou te reconhecendo.
-- É tudo ou nada. Não podemos perder essa oportunidade. A população tem de estar disposta a pegar em armas, se for preciso.
-- Não é por aí. Preciso ir, mas a gente volta a conversar depois, diz e vai embora.

*

Sessão da Câmara. Lima discursa.
-- O que esperar de uma regulamentação que pretende lancetar braços e sabe-se lá que outras partes dos corpos das mulheres e moças de bem do Brasil?
Em pouco tempo, e para além da Casa do Povo, o local da aplicação da vacina migra dos braços para as coxas, nádegas e virilhas. Indignação e revolta agitam os ânimos e a dignidade de senhores e senhoras pela cidade afora.
-- Onde já se viu uma coisa dessas? Vá lá que a messalina tire a roupa, mas a moça donzela, a esposa, a mãe? Isso não!
-- É o bota-abaixo da decência.
-- A perdição da família!
-- Podemos pegar a moléstia da virulenta e até da degradação.
-- E pelas mãos de um homem qualquer. Que vexame!
-- É a lei cega e surda aos abaixo-assinados.
-- A nossa autoridade debaixo da bota alheia.
-- Como um homem volta pra casa no fim do dia sem poder afirmar que a honra da família está do jeitinho que deixou quando saiu para o trabalho?
-- Não sou um fracalhão nem capacho de mata-mosquito. Sou homem e cidadão. Boto pra correr o primeiro cafajeste que bater em casa.
-- Não adianta embezerrar. Ou arruma um da esmeralda pra te dar o atestado ou se prepara para a espetada da despudorada e ponto final.
-- Você que pensa. Vem luta por aí e das boas.
  
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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