DE AMOR EM PEDAÇOS
Herculano e Anacleto chegam na hora do almoço
à delegacia. A recepção está abarrotada de meretrizes presas por não cumprirem
as ordens de mudar para os arrabaldes. Também estão presentes jornalistas que
acompanham o combate da 4ª Circunscrição à prostituição. Em meio a xingamentos,
as mulheres são recolhidas às celas. Quando a recepção finalmente se esvazia,
Barroso atende o advogado e o capitão. Porém, a chegada de outra carroça lotada
de prostitutas interrompe a conversa.
Pressionado pelo horário das aulas, Herculano
deixa o advogado e passa no escritório no final do dia. Fica sabendo da transferência
de Divina e de Touro para a casa de detenção na manhã seguinte e as
providências a serem tomadas por Anacleto.
-- Vou pedir a anulação do processo. No mais,
nada há para ser feito.
Herculano segue para a redação e escreve um
artigo sobre o corrido. Qualifica de arbitrária a prisão das meretrizes e de
crime contra a liberdade de crença a detenção de Divina. Conclama o ministro da
Justiça a explicar a ilegalidade das detenções, e alerta aos leitores sobre a
violação da Constituição pelo Governo: “Atentem, leitores, quem manda não
opina, quem opina fiscaliza e ainda põe e tira seus governantes”.
A
cidade amanhece com os pregões dos meninos jornaleiros.
-- Extra! Extra! Muié da vida tá tudo no
xadrez.
Barroso regozija-se com os artigos
prestigiosos ao trabalho da sua delegacia e ignora as críticas. Theodoro se
irrita com as prisões. Procura Silva Castro e o aconselha a afastar o delegado
e se preparar para o temporal.
Emiliano e Ferdinando se cumprimentam pelo
desfecho exitoso.
-- Vamos entrar em ação.
-- Convém darmos um pouco mais de tempo.
-- Já esperamos demais.
-- Não em boas condições. Se fizermos a
proposta agora não surtirá efeito.
-- Como não? Se tivesse dinheiro sobrando,
sinhá Cota não ia viver de tabuleiros e do curandeirismo da benzedeira.
-- Por isso mesmo, Ferdinando. Vamos deixa o
mulherio chorar e se descabelar com a prisão. Enquanto se lastimam, esquecem os
quitutes, ficam mal das pernas e sem dinheiro ouvirão melhor a proposta de
compra.
A notícia das prisões se mantém nas primeiras
páginas dos jornais, alimentada por grande polêmica. De um lado, os higienistas
defende a regulamentação da profissão do meretrício. Do outro lado, os educadores
a combatem: “a regulamentação tornará o Estado brasileiro o patrono criminoso
daquelas em que a miséria, a ignorância e os instintos viciosos obrigam o
comércio do corpo”. Outras gazetas ainda dão destaque à prisão da Divina. É
forte a opinião de que o curandeirismo aprisiona o povo em tradições bestiais,
incita a beberagem, o transbordamento dos instintos e tornam filhas de santos
em prostitutas: “Por todas essas razões, a superstição se enquadra em crime
contra a saúde pública e deve ser combatida por uma sociedade civilizada”.
Advogados escrevem artigos contestando as
prisões, outros assumem a defesa das presas. Em conjunto com Anacleto,
conseguem alvarás que soltam o grupo todo – benzedeira, benzido e meretrizes.
Silva Castro fala com a imprensa que o lastimável episódio decorreu da tensão
vivida pelo subordinado no seu esmerado compromisso em servir aos bons
costumes. Enraivecido com a declaração, Barroso jura se vingar do superior por
ter fugido da raia. O juramento é compartilhado por Raposo e guardas da sua
circunscrição. Ferdinando responsabiliza Emiliano pela oportunidade perdida e a
amizade se abala. Por outro lado, fortalecem-se os vínculos d’Os Materialistas com Herculano por ter
contribuído para aquela libertação. A satisfação também se expressa na redação
do Comércio do Brasil. As vendas
aumentaram durante os dias da cobertura da prisão, em número que superou o
obtido com a notícia da morte do açougueiro. Cumprimentos efusivos são dados ao
autor das matérias que lhes responde:
-- Agradeço em nome de Apolônio Cidadão.
O contínuo Vivaldino, presente na
comemoração, reporta, no final do dia, para Theodoro a declaração ouvida.
-- O capitão é o Apolônio, doutor.
A confirmação desgasta Theodoro. Preciso acabar com esse sujeito, pensa.
Sentimento oposto congrega as mulheres do
casarão de Sinhá Cota. Todas querem ir agradecer ao Capitão. Divina paralisa-se
com a ideia. Impossível fitar D. Páscoa, com o coração a palpitar pelo marido
dela.
-- Não, não carece. Belizária agradecerá em
meu nome.
-- Que desfeita. A gente é pobre, mas tem
modos. O certo é agradecer.
-- E atrapalhar o Capitão que tem tanta coisa
para fazer? Não quero, não.
-- Ora! Entra num pé e sai no outro.
-- Já disse. Belizária agradece e leva um
doce em sinal da minha gratidão.
Sinhá Cota olha para essa relutância, com ar
desconfiado: que se passa com essa negra
que nunca deixou de cumprir o riscado?
Casa a dormir, Divina aparece na cozinha,
vestida com roupa alva e o corpo banhado em última água temperada com infusão
de ervas. Pega frutas e as descasca. Aprova o doce do abacaxi e o sabor do
coco, que rala como se ralasse a dureza de confinar a emoção que lateja dentro
dela; depois desmancha os gomos do abacaxi, como se dissolvesse as ilusões.
Seleciona ovos de cascas amarronzadas. Separa as claras e as gemas, como se
desprendesse do imponderável o fogo da paixão. Peneira o açúcar, depois a
farinha. Em queda, a chuva branca dos ingredientes evoca sonhos desfeitos.
Segue em frente. Reserva colheres de banha tão suculenta como os desejos da
carne que não findam. Reserva também leite, pitadas de sal e fermento. Tudo
precisa de nutrição, salgamento e ajuda para crescer – em especial a força para
saber conviver com um sentimento sem razão de ser. Reúne num recipiente parte
desses ingredientes, imantados com carinho e fé, quando então se move para o
passo seguinte da magia.
Panela ao fogo brando, o cozimento se
processa lentamente, porém mais célere que o tempo necessário para ocorrer
determinados esquecimentos. O perfume do abacaxi logo rescende. O creme dá o
ponto, em sustância dourada raiada pelas alvas fibras do coco. Fica a
descansar.
Numa tigela sobre a mesa, as mãos misturam os
sonhos desfeitos e neles acrescentam os nutrientes da sabedoria e também
aquelas gemas da onde poderia ter brotado a paixão. Nesse adobo se desenrola a
última etapa do encantamento: as mãos sovam os intentos de conviver em paz com
a emoção. Massa deitada em tabuleiro untado, recheio derramado, cobertura
assentada sobre o preparado, Divina leva sua magia para assar. Mais tarde, o
forno recebe o imponderável depois de ter sido batido em neve, adoçado com
açúcar e o sabor avivado com raspinhas de limão.
Pela manhã, numa travessa coberta com linho
alvo bordado em ponto cruz, Belizária oferta ao patrão o amor em pedaços de
Divina, rodeados de seus suspiros. O retorno da mensageira informa que todos
adoraram o agradecimento. O Capitão? Nem se fala. Mesmo sem ser muito de doce,
comeu sabe-se lá quantos pedaços entre um gole e outro de café amargo, como
gosta de tomar. Os suspiros? Ah! Reservou para depois. A benzedeira sorri.
Saber dessa satisfação algodoa a dor de aceitar o que não pode ser. E sorri
ainda mais, quando a porta se abre e um esquálido, mas inteiro e saudoso
Juliano penetra a sala. A vida parece entrar de novo nos eixos, no casarão de
Sinhá Cota.
Copyright © 2013
by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema
e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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