TOUCHÉ
-- Finalmente conseguimos nos encontrar, diz
Theodoro entregando a Herculano um cálice de Porto.
Ergue o seu numa menção de brinde. Herculano repete
o gesto. Ambos se sentam. Estão na sala reservada do Clube dos Funcionários.
-- Então quais as perspectivas para 1905?
-- Muito trabalho, responde Herculano.
-- Ainda mais num país como o nosso, onde
tudo está por ser feito.
-- Exato.
-- Acha que a civilização depende do progresso
das associações?
-- Totalmente e também do aperfeiçoamento da
igualdade de condição.
-- Folgo em saber que é leitor de Tocqueville!
Democracia na América é um dos livros que mais releio.
-- Há muito para assimilar. Mas faço um
pequeno ajuste no aforismo do filósofo. A Moral é a ciência-mãe, não a ciência
das associações. Une-se por motivos diversos e nem todos levam ao progresso da
maioria.
-- Bem notado. Há esse lado. A propósito, que
motivos unem os conspiradores denunciados pelo governo?
-- Não tenho acesso ao relatório policial
para dizer.
-- Esgrima bem, Capitão. E me explico. Não viso
obter delações do senhor. Meu interesse é saber se tem outra aspiração, ou somente
a de depor o governo.
-- Pode ser um pouco mais objetivo?
-- Simpatizo-me cada vez mais com o senhor e lhe
digo: bom seria se pudéssemos resolver os problemas do país de modo impecável e
consecutivo como as etapas da solução de um teorema. Mas essa racionalidade
parece ser somente do domínio da matemática, não das relações humanas. Essas se
pautam por uma lógica pessoal, nem sempre razoáveis para o bem comum. De tal
modo, se pretendemos remover o atraso do país, temos de ser hábeis no trato dessa
realidade.
-- Imagino que o pragmatismo faça parte dessa
habilidade.
-- Claro! Um atributo-mor da inteligência.
-- Com o risco de desvirtuar, no mínimo, para
a leniência.
-- Trabalho com a matéria-prima à disposição,
sem fazer juízo de valores. Preciso de resultados, pode me compreender?
-- Perfeitamente.
-- Que bom. Porque tenho uma oferta a lhe
fazer, se for do seu interesse, é claro.
-- Pois não.
-- Vejo-o no governo e posso pôr o senhor na
pasta da Instrução ou no ministério da Guerra. Poderá servir a Pátria e crescer.
O que me diz?
-- Infelizmente, não vejo espaço, a julgar
pela realidade que me descreveu.
-- Acha que carreguei na tinta?
-- Não, de modo algum. Temos um Estado
impotente, e creio num forte, edificado pela aplicação das ciências e regido
pela Moral.
-- Por isso o meu convite: venha construí-lo
conosco.
-- Possuímos premissas diferentes.
-- Há sempre um ponto de convergência em
tudo.
-- Não com o irrazoável, Dr. Theodoro. Sem ar
e água não há vida. Assim não há como ignorar, nem barganhar as condições de existência
e de progresso para todos.
-- Porém se barganha. Há até nome para isso: defesa
de interesses e democracia. E não se engane: cada parte só quer ampliar o ar e
a água que desfruta. Jamais abrir mão do que tem, nem que seja uma nesga em
favor do outro.
-- Parece confortável com essa realidade.
-- Sim. Decerto que é uma atitude indefensável,
porém, necessária, ou pragmática, como queira. É preciso se ater ao exequível e
crescer com ele. Vê essa maleta?
Herculano diz que sim, sem olhar para o
objeto no chão, ao lado de Theodoro.
-- Dentro há uma amostra do crescimento que
poderá ter se nos associarmos.
-- Sei. E fora da maleta, o Estado continua sendo
útil somente para a minoria.
-- Negativo. Se unirmos nossas forças, os
avanços poderão ser maiores.
-- É bastante entusiasta, mas sou cético
nesse particular, Dr. Theodoro.
-- Espero que não lute contra a lógica da
realidade. É um adversário poderoso.
-- Todo homem tem de fazer suas escolhas.
-- Que podem ser revistas. Por que tornar o
ideal um inferno para nós?
-- No meu caso, por vaidade. Ser bem
lembrado, compreende?
-- Imagina-se como um predestinado a feitos
brilhantes?
-- Quase isso e, como o senhor, preciso também
de resultados, mas advindos do saneamento do Estado. Só assim um número cada
vez maior de desiguais poderá desenvolver o seu potencial humano e ter uma
jornada de vida satisfatória. Agradeço o interesse na minha pessoa e o cálice
de Porto.
Herculano se levanta e Theodoro o acompanha
até a porta.
-- Mantenho em aberto o convite. Nunca me dou
por vencido.
-- Boa atitude: o perdedor de hoje pode ser o
vencedor de amanhã – e vice-versa.
-- Touché.
Herculano meneia a cabeça e sai. Durante a
conversa experimentou o prazer de perceber a intenção de Theodoro em cooptá-lo
e agora, enquanto caminha, o prazer se redobra com a reflexão de que é visto como
aquele que pode abortar ou levar adiante a tomado do poder: tudo concorre ao meu favor, pensa. O destemor se mistura com a confiança
de estar a um passo de concretizar o objetivo de sua vida. O coração dispara
como se fosse arrebentar. A imagem da República surge e se expande do seu corpo
como um invólucro diáfano. A claridade da tarde resplandece. Raios de sol
esbraseiam o paralelepípedo da rua. O sólido parece derreter. A atmosfera a
ondular. E tudo faísca com o seu corpo envolvido pelo translúcido da República.
-- Está se sentindo mal? – alguém lhe
pergunta.
Tenta fixar a visão, falar algo, mas não consegue.
Escuridão. Quando volta a si, está sentado na cadeira de um engraxate, com um
monte de gente diante de si.
Copyright © 2013
by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema
e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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