segunda-feira, 29 de junho de 2015

Capítulo Cento e Três

TOUCHÉ


-- Finalmente conseguimos nos encontrar, diz Theodoro entregando a Herculano um cálice de Porto.
Ergue o seu numa menção de brinde. Herculano repete o gesto. Ambos se sentam. Estão na sala reservada do Clube dos Funcionários.
-- Então quais as perspectivas para 1905?
-- Muito trabalho, responde Herculano.  
-- Ainda mais num país como o nosso, onde tudo está por ser feito.
-- Exato.
-- Acha que a civilização depende do progresso das associações?
-- Totalmente e também do aperfeiçoamento da igualdade de condição.
-- Folgo em saber que é leitor de Tocqueville! Democracia na América é um dos livros que mais releio.
-- Há muito para assimilar. Mas faço um pequeno ajuste no aforismo do filósofo. A Moral é a ciência-mãe, não a ciência das associações. Une-se por motivos diversos e nem todos levam ao progresso da maioria.
-- Bem notado. Há esse lado. A propósito, que motivos unem os conspiradores denunciados pelo governo?
-- Não tenho acesso ao relatório policial para dizer.
-- Esgrima bem, Capitão. E me explico. Não viso obter delações do senhor. Meu interesse é saber se tem outra aspiração, ou somente a de depor o governo.
-- Pode ser um pouco mais objetivo?
-- Simpatizo-me cada vez mais com o senhor e lhe digo: bom seria se pudéssemos resolver os problemas do país de modo impecável e consecutivo como as etapas da solução de um teorema. Mas essa racionalidade parece ser somente do domínio da matemática, não das relações humanas. Essas se pautam por uma lógica pessoal, nem sempre razoáveis para o bem comum. De tal modo, se pretendemos remover o atraso do país, temos de ser hábeis no trato dessa realidade.
-- Imagino que o pragmatismo faça parte dessa habilidade.
-- Claro! Um atributo-mor da inteligência.
-- Com o risco de desvirtuar, no mínimo, para a leniência.
-- Trabalho com a matéria-prima à disposição, sem fazer juízo de valores. Preciso de resultados, pode me compreender?
-- Perfeitamente.
-- Que bom. Porque tenho uma oferta a lhe fazer, se for do seu interesse, é claro.
-- Pois não.
-- Vejo-o no governo e posso pôr o senhor na pasta da Instrução ou no ministério da Guerra. Poderá servir a Pátria e crescer. O que me diz?
-- Infelizmente, não vejo espaço, a julgar pela realidade que me descreveu.
-- Acha que carreguei na tinta?
-- Não, de modo algum. Temos um Estado impotente, e creio num forte, edificado pela aplicação das ciências e regido pela Moral.
-- Por isso o meu convite: venha construí-lo conosco.
-- Possuímos premissas diferentes.
-- Há sempre um ponto de convergência em tudo.
-- Não com o irrazoável, Dr. Theodoro. Sem ar e água não há vida. Assim não há como ignorar, nem barganhar as condições de existência e de progresso para todos.
-- Porém se barganha. Há até nome para isso: defesa de interesses e democracia. E não se engane: cada parte só quer ampliar o ar e a água que desfruta. Jamais abrir mão do que tem, nem que seja uma nesga em favor do outro.
-- Parece confortável com essa realidade.
-- Sim. Decerto que é uma atitude indefensável, porém, necessária, ou pragmática, como queira. É preciso se ater ao exequível e crescer com ele. Vê essa maleta?
Herculano diz que sim, sem olhar para o objeto no chão, ao lado de Theodoro.
-- Dentro há uma amostra do crescimento que poderá ter se nos associarmos.
-- Sei. E fora da maleta, o Estado continua sendo útil somente para a minoria.
-- Negativo. Se unirmos nossas forças, os avanços poderão ser maiores.
-- É bastante entusiasta, mas sou cético nesse particular, Dr. Theodoro.
-- Espero que não lute contra a lógica da realidade. É um adversário poderoso.
-- Todo homem tem de fazer suas escolhas.
-- Que podem ser revistas. Por que tornar o ideal um inferno para nós?  
-- No meu caso, por vaidade. Ser bem lembrado, compreende?
-- Imagina-se como um predestinado a feitos brilhantes?
-- Quase isso e, como o senhor, preciso também de resultados, mas advindos do saneamento do Estado. Só assim um número cada vez maior de desiguais poderá desenvolver o seu potencial humano e ter uma jornada de vida satisfatória. Agradeço o interesse na minha pessoa e o cálice de Porto.
Herculano se levanta e Theodoro o acompanha até a porta.
-- Mantenho em aberto o convite. Nunca me dou por vencido.
-- Boa atitude: o perdedor de hoje pode ser o vencedor de amanhã – e vice-versa.
-- Touché.  
Herculano meneia a cabeça e sai. Durante a conversa experimentou o prazer de perceber a intenção de Theodoro em cooptá-lo e agora, enquanto caminha, o prazer se redobra com a reflexão de que é visto como aquele que pode abortar ou levar adiante a tomado do poder: tudo concorre ao meu favor, pensa. O destemor se mistura com a confiança de estar a um passo de concretizar o objetivo de sua vida. O coração dispara como se fosse arrebentar. A imagem da República surge e se expande do seu corpo como um invólucro diáfano. A claridade da tarde resplandece. Raios de sol esbraseiam o paralelepípedo da rua. O sólido parece derreter. A atmosfera a ondular. E tudo faísca com o seu corpo envolvido pelo translúcido da República.
-- Está se sentindo mal? – alguém lhe pergunta.
Tenta fixar a visão, falar algo, mas não consegue. Escuridão. Quando volta a si, está sentado na cadeira de um engraxate, com um monte de gente diante de si.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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