sábado, 20 de junho de 2015

Capítulo Noventa e Seis

DRAGADO PELO VAZIO


Desde a publicação dos Cruzados da Moral, Abreu Vaz tem se desdobrado para comparecer no L’ Onde Bleue e também para estar junto da esposa. Quando a temática do meretrício sumiu dos jornais e as críticas à aventura extraconjugal silenciaram, suspirou certo de poder aquietar o seu elixir com a sua presença constante. Porém, o inesperado aconteceu. Carlota rompeu a dignidade do silêncio. Descarregou seus ressentimentos e acusou o marido de arruinar o casamento com o vício da carne. Novamente as escapulidas de Abreu Vaz tornaram-se céleres e difíceis, como essa que realiza pela Rua da Alfândega, por onde caminha com a bengala de osso negro e ponteira de prata a ajudar a carregar o fardo de seus dilemas morais.
Não entende a esposa, se o problema conjugal se desenrolou por causa do seu decoro. Com paciência e empenho, consumou a noite de núpcias meses depois de casado. Pensou que com o tempo Carlota se rendesse não aos deveres conjugais, mas ao aprazível do leito nupcial. Enganou-se. Quando a procurava, ela se enrijecia. Tanto que, se não fosse o desejo de ser pai, teria desistido do intento. As gêmeas Angélica e Amarílis foram concebidas. O juiz lançou-se em novas investidas desejoso de ter um filho. Violeta nasceu e Carlota pôs um ponto final nas procuras noturnas: “respeito-te como o baluarte da família e é na tua dignidade que quero me agarrar, não em teu corpo”. Da cama de casal, o magistrado se mudou para a do quarto ao lado, e desse leito para o dos bordéis. Até que houve a perda da potência, a resignação em ter se tornado velho antes da hora e o renascimento com as carícias de Mariinha, que avista entretida em contemplar uma vitrine na Rua Direita. Apressa o passo e enxerga a aproximação de um encarador pronto para dar o bote da conquista. O sujeito é Rubião, que, irisado de desejos, pega-a pelo braço. A moça reage.
-- Me solta.
-- Se é por falta de réis, tenho uns tostões aqui.
-- Vai lamber sabão.
-- Nunca me enganou, sua safadinha.
Abreu Vaz o interpela. 
-- Que modos são esses?
-- Ioiô!
-- Não se meta em assunto alheio.
-- Sabe com quem o senhor está falando?
-- Por acaso com Napoleão à paisana?
-- Com o Juiz Abreu Vaz e posso te prender por molestar a jovem.
-- Deixa a autoridade de lado e vem pra cima se é homem.
-- Biltre, diz e ergue a bengala.
-- Não, ioiô! Vamos embora!
Mariinha enlaça o braço do magistrado e o impulsiona a andar. Altivo, mão crispada na bengala, passa ao lado do encarador. No quarto do L’ Onde Bleue, o incidente acarreta a proibição de saídas sozinhas.
-- Ah, não.
-- Ah, sim. Ir pra rua desacompanhada é ser amoestada por ordinários.
-- E eu digo: ô seu pronto, não se enxerga?
-- Os homens são terríveis e ardilosos. Têm os brutos, como aqueles, e também os sonsos. És muito inocente, não vês maldade em nada, só alegria.
-- Não vejo problema algum. Ademais toda mulher sabe com que linha quer coser a sua vida – e as minhas são do seu carretel, Ioiô.
Amolecido com tanto dengo, Abreu Vaz a puxa para o seu peito.
-- Vem cá.
-- Ó, Ioiô! Eu não quero ver a vida passar trancada num quarto.
-- Calma! Tem todo o tempo do mundo pela frente.
-- Você não pensa em mim.
-- Piteuzinho, não recomece.
-- Se pelo menos viesse todos os dias...
-- Por que me faz sofrer, se sabes que não posso me casar com você?
-- Por que maltratas meu amor por ti?
-- Não maltrato e mereço a tua compreensão.
-- E eu a tua. Preciso tomar ar de vez em quando.
-- Não fica bem andares por aí sozinha. O que os outros dirão?
-- E de mim para mim, o que direi: és uma teúda e manteúda, sem direito a fazer nada na vida?
-- Não fale assim.
-- É verdade. Sou que nem um passarinho preso em gaiola de ouro. Não sei se aguento mais essa prisão.
-- Se eu chegar aqui e não te encontrar, nunca mais me verá.
-- É melhor então nem voltar.
-- É o que queres?
-- Eu não. Você.
Indignado, o magistrado dá as costas... Mariinha se mantém firme, mas depois que a porta se fecha, joga-se na cama em prantos.
Ao entrar em casa, Abreu Vaz intui problemas sinalizados pela presença da cunhada sóror e pelo seu semblante sombrio. A intuição se confirma com a notícia de que Carlota se suicidou. Sente-se dragado pelo vazio.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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