IMAGEM ABALADA
A Brigada Sanitária desponta na Rua da
Alfândega, com baldes, vassouras, desinfetantes e caixas de injeções. Como uma
enxurrada, espraia-se pela via, estrondeia e inunda as moradias coletivas. À
força aplica-se a vacina contra a varíola. A comoção transborda para as
calçadas de onde se assiste a evacuação dos moradores para que a desinfecção
possa ser executada nos domicílios. Ocorre o expurgo definitivo de algumas
famílias. O regulamento do Código Sanitário é preciso: a alta insalubridade de
um espaço determina a desocupação imediata para a demolição do imóvel. O bafio
dos interiores se mescla com a inhaca dos agentes sanitários. Caixas d’água,
empenas e calhas são lavadas; quintais varridos; ralos e bueiros petrolizados e
entulho é removido. Ratos correm; baratas voam; pulgas pulam; o desespero
desaloja-se ao leu, sem rumo.
O projeto de vacinação obrigatória entra na
Câmara Federal a 18 de agosto. No mesmo dia, falece, na Rua da Alfândega, uma
moradora vacinada. A imprensa divulga a
morte na manhã seguinte, com editoriais que questionam a aplicação da injeção
sem respaldo legal. Apolônio Cidadão frisa que o governo faz da arbitrariedade
uma norma de conduta, retoma as dúvidas com relação à segurança da imunização e
convoca o Diretor da Saúde para explicar à população sobre as causas do novo
infortúnio.
Pressionado pelas críticas e convocações,
Oswaldo Cruz envia uma mensagem às redações: “examinei o corpo da falecida e
não encontrei nenhuma evidência de ser a vacina a causa da morte súbita.
Concluo que sintomas desconhecidos causaram o debilitamento do organismo da
jovem, e tenho a consciência tranquila do dever cumprido científica e
honradamente à frente da Diretoria de Saúde”.
A oposição jornalística explora o
pronunciamento.
“Podemos enxergar na declaração de Dr.
Oswaldo Cruz uma contestação formal do laudo médico?”
“Essa contestação ilustra o monopólio do
saber científico que o Diretor Geral de Saúde busca ter!”
“Que fé pode merecer os médicos do nosso Necrotério
municipal, se o governo é o primeiro a desautorizá-los e menosprezar seus
atestados?”
Theodoro se irrita com a atitude precipitado
de Cruz. Procura o presidente.
-- Impossível trabalhar assim.
-- Lastimo a repercussão negativa da
declaração, mas o Diretor de Saúde possui autonomia. Sobreviveremos a esse
incidente. Algo mais?
-- Não, senhor presidente.
Persistem os pedidos de esclarecimentos da
morte da jovem. Numa tentativa autônoma de resolver o assunto, o ministro da
Justiça declara aos jornalistas que convocará o médico legisla para ouvir seu
parecer. A decisão se estampa nos jornais.
De novo Theodoro se reúne com Rodrigues
Alves.
-- É uma acareação o que o Dr. Seabra propôs. Se
endossar o laudo do médico legista, irá desmoralizar o Diretor de Saúde, se o
refutar, aumentará o fogo da discórdia.
-- Vamos superar esse revés e cuide para não
se desgastar com seus pares. A cizânia não pode embrenhar pelo governo.
-- Contudo, há de convir, senhor presidente, para
as boas relações com a imprensa, preciso saber, em tempo hábil, de intenções de
entrevistas e de comunicados às redações.
-- Falarei com cada um e combinaremos
procedimentos adequados.
-- Nesse caso específico, só nos resta deixar
o dito pelo não dito – e se calou.
Não ousou dizer o que o presidente entendeu
de mexer no fétido daquela questão.
Sem retorno para a opinião pública das
conclusões da tal acareação, que ninguém soube se houve, a imagem do governo
sofreu outro abalo junto à opinião pública.
Copyright © 2013
by Maria Tereza O. S. Campos
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