terça-feira, 16 de junho de 2015

Capítulo Oitenta e Oito

IMAGEM ABALADA


A Brigada Sanitária desponta na Rua da Alfândega, com baldes, vassouras, desinfetantes e caixas de injeções. Como uma enxurrada, espraia-se pela via, estrondeia e inunda as moradias coletivas. À força aplica-se a vacina contra a varíola. A comoção transborda para as calçadas de onde se assiste a evacuação dos moradores para que a desinfecção possa ser executada nos domicílios. Ocorre o expurgo definitivo de algumas famílias. O regulamento do Código Sanitário é preciso: a alta insalubridade de um espaço determina a desocupação imediata para a demolição do imóvel. O bafio dos interiores se mescla com a inhaca dos agentes sanitários. Caixas d’água, empenas e calhas são lavadas; quintais varridos; ralos e bueiros petrolizados e entulho é removido. Ratos correm; baratas voam; pulgas pulam; o desespero desaloja-se ao leu, sem rumo.
                                                                                                                      
O projeto de vacinação obrigatória entra na Câmara Federal a 18 de agosto. No mesmo dia, falece, na Rua da Alfândega, uma moradora vacinada.  A imprensa divulga a morte na manhã seguinte, com editoriais que questionam a aplicação da injeção sem respaldo legal. Apolônio Cidadão frisa que o governo faz da arbitrariedade uma norma de conduta, retoma as dúvidas com relação à segurança da imunização e convoca o Diretor da Saúde para explicar à população sobre as causas do novo infortúnio.
Pressionado pelas críticas e convocações, Oswaldo Cruz envia uma mensagem às redações: “examinei o corpo da falecida e não encontrei nenhuma evidência de ser a vacina a causa da morte súbita. Concluo que sintomas desconhecidos causaram o debilitamento do organismo da jovem, e tenho a consciência tranquila do dever cumprido científica e honradamente à frente da Diretoria de Saúde”.
A oposição jornalística explora o pronunciamento.
“Podemos enxergar na declaração de Dr. Oswaldo Cruz uma contestação formal do laudo médico?”
“Essa contestação ilustra o monopólio do saber científico que o Diretor Geral de Saúde busca ter!”
“Que fé pode merecer os médicos do nosso Necrotério municipal, se o governo é o primeiro a desautorizá-los e menosprezar seus atestados?”
Theodoro se irrita com a atitude precipitado de Cruz. Procura o presidente.
-- Impossível trabalhar assim.
-- Lastimo a repercussão negativa da declaração, mas o Diretor de Saúde possui autonomia. Sobreviveremos a esse incidente. Algo mais?
-- Não, senhor presidente.
Persistem os pedidos de esclarecimentos da morte da jovem. Numa tentativa autônoma de resolver o assunto, o ministro da Justiça declara aos jornalistas que convocará o médico legisla para ouvir seu parecer. A decisão se estampa nos jornais.
De novo Theodoro se reúne com Rodrigues Alves.
-- É uma acareação o que o Dr. Seabra propôs. Se endossar o laudo do médico legista, irá desmoralizar o Diretor de Saúde, se o refutar, aumentará o fogo da discórdia.
-- Vamos superar esse revés e cuide para não se desgastar com seus pares. A cizânia não pode embrenhar pelo governo.
-- Contudo, há de convir, senhor presidente, para as boas relações com a imprensa, preciso saber, em tempo hábil, de intenções de entrevistas e de comunicados às redações.
-- Falarei com cada um e combinaremos procedimentos adequados.
-- Nesse caso específico, só nos resta deixar o dito pelo não dito – e se calou.
Não ousou dizer o que o presidente entendeu de mexer no fétido daquela questão.
Sem retorno para a opinião pública das conclusões da tal acareação, que ninguém soube se houve, a imagem do governo sofreu outro abalo junto à opinião pública.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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