NÃO VOU FALHAR DESSA VEZ
Concentrados
de expectativas, Herculano, Sofia e Quitéria se distribuem pelo quarto. Só Tião
se mantém à porta. O médico apropria-se do espaço.
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Folgo em vê-la em tão bom estado.
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Sinto-me melhor. Inclusive...
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Caríssima, sei como está e, se precisar confirmar, eu mesmo pergunto.
Olhares
incomodados reluzem. Páscoa entende que falou demais.
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O que faz de pé? Sente-se, ordena o médico. Obedecido, ausculta o coração da
paciente e, em seguida, lhe faz perguntas.
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Como anda a prostração?
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Diminuiu.
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O apetite?
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Voltou.
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A pressão do peito?
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Desanuviou.
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E a cabeça... Vazia, sem tormento algum?
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Nenhum.
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Disposta para a vida do lar?
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Muito. Até gostaria de voltar a bordar...
O
cenho sensível de Dr. Eugênio se franze e a paciente tenta contornar a
reprovação causada pela fala indisciplinada.
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Se achar conveniente, diz declinando o olhar para as mãos de Quitéria que
retira do seu colo o fino tecido sobre o qual o médico auscultava há pouco seu
coração.
Dr.
Eugênio afasta-se. Põe o estetoscópio dentro da valise, cruza as mãos atrás das
costas e caminha até a janela. Vira o rosto para trás – confere aquele ar
cordial – e, num impulso único, abre a janela.
O
sol entra absoluto. Páscoa tomba a cabeça sobre o encosto da poltrona. Luz e
calor a banham. Nunca o sol foi tão forte e a claridade tão intensa. Herculano
retesa-se: e agora, o que virá? Sofia enlaça a coluna da cama, como se
abraçasse a mãe com as suas expectativas de dias felizes. Quitéria leva as mãos ao
alto e em silêncio saúda: Epa, Epa Babá, salve gloriosa presença, Oxalá.
Tião sai corredor adentro, aliviado pelo banzo vencido. Herculano pergunta se
acabou o tratamento.
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Ainda não, responde o médico. As emoções paralisam-se no quarto. -- No entanto,
D. Páscoa poderá voltar para a vida do lar, em companhia da filha.
Os
olhos de Sofia brilham novamente.
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Poderá bordar sempre que quiser.
Pelo
menos isso, retruca Páscoa em silêncio e aliviada.
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Deve deitar-se uma hora após o almoço e recolher-se uma hora depois do jantar.
Quitéria
balança a cabeça, memorizando a prescrição.
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Nada de leituras, escritas ou grandes devaneios. É preciso poupar o cérebro, se
não roubará a energia tão duramente recuperada.
Faz sentido, admite
Herculano.
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E como os ares frescos e salitrados do arraial são essenciais à recuperação,
prescrevo ainda uma hora de passeio matinal pela praia.
Não! Protesta o
marido consigo mesmo enquanto observa o indecifrável fechar de olhos da mulher.
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Após o passeio, deverá tomar um copo de leite e realizar a higiene pessoal. Se
estas prescrições forem seguidas à risca, Capitão, em quarenta dias, poderá
levar sua família de volta para Botafogo.
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Quarenta dias?
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É o tempo necessário para a energia do cérebro se estabilizar.
Quarenta
dias, pensa Páscoa, inebriada com tamanha eternidade.
Os
homens saem. Quitéria corre para providenciar-lhes café. Páscoa caminha para a
janela. Sofia a segue e, como ela, apoia as mãos no parapeito. Timidamente, os
rostos se voltam um para o outro. Nos olhos da mãe, a filha reconhece o olhar
do retrato de quando Páscoa se casou; nos da filha, a mãe enxerga os pedidos de
alegria que a sua melhora suscita. O calor eclode dentro da mulher com a
percepção do peso dessa solicitação que também é sua. Mas há a esperança de ser
capaz de nutrir a si mesma e a menina da felicidade possível. Não vou falhar dessa vez. Os rostos se
voltam para a claridade do dia. Ondas em crinas brancas atravessam o mar azul.
Copyright © 2013
by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by
Maria Tereza O. S. Campos
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