segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Capítulo Doze

     NÃO VOU FALHAR DESSA VEZ


     Teatral como de costume, Dr. Eugênio adentra o aposento da paciente e para ao vê-la de cabelos presos, sorriso bem posto e corpo docilmente ereto, no centro do palco, onde ele reinara absoluto durante as visitas semanais dos últimos dois meses. A fera domada quer sair da jaula, conclui envaidecido com a vitória que supõe ser obra sua. Está certo, méritos à parte. Ter alta é o que ela quer, para recuperar a liberdade possível e viver ancorada na esperança renascida pelo prazer conhecido no mar.
Concentrados de expectativas, Herculano, Sofia e Quitéria se distribuem pelo quarto. Só Tião se mantém à porta. O médico apropria-se do espaço.
-- Folgo em vê-la em tão bom estado. 
-- Sinto-me melhor. Inclusive...
-- Caríssima, sei como está e, se precisar confirmar, eu mesmo pergunto.
Olhares incomodados reluzem. Páscoa entende que falou demais.
-- O que faz de pé? Sente-se, ordena o médico. Obedecido, ausculta o coração da paciente e, em seguida, lhe faz perguntas.
-- Como anda a prostração?
-- Diminuiu.
-- O apetite?
-- Voltou.
-- A pressão do peito?
-- Desanuviou.
-- E a cabeça... Vazia, sem tormento algum?
-- Nenhum.
-- Disposta para a vida do lar?
-- Muito. Até gostaria de voltar a bordar...
O cenho sensível de Dr. Eugênio se franze e a paciente tenta contornar a reprovação causada pela fala indisciplinada.
-- Se achar conveniente, diz declinando o olhar para as mãos de Quitéria que retira do seu colo o fino tecido sobre o qual o médico auscultava há pouco seu coração.
Dr. Eugênio afasta-se. Põe o estetoscópio dentro da valise, cruza as mãos atrás das costas e caminha até a janela. Vira o rosto para trás – confere aquele ar cordial – e, num impulso único, abre a janela.
O sol entra absoluto. Páscoa tomba a cabeça sobre o encosto da poltrona. Luz e calor a banham. Nunca o sol foi tão forte e a claridade tão intensa. Herculano retesa-se: e agora, o que virá? Sofia enlaça a coluna da cama, como se abraçasse a mãe com as suas expectativas de dias felizes. Quitéria leva as mãos ao alto e em silêncio saúda: Epa, Epa Babá, salve gloriosa presença, Oxalá. Tião sai corredor adentro, aliviado pelo banzo vencido. Herculano pergunta se acabou o tratamento.
-- Ainda não, responde o médico. As emoções paralisam-se no quarto. -- No entanto, D. Páscoa poderá voltar para a vida do lar, em companhia da filha.
Os olhos de Sofia brilham novamente.
-- Poderá bordar sempre que quiser.
Pelo menos isso, retruca Páscoa em silêncio e aliviada.
-- Deve deitar-se uma hora após o almoço e recolher-se uma hora depois do jantar.
Quitéria balança a cabeça, memorizando a prescrição.
-- Nada de leituras, escritas ou grandes devaneios. É preciso poupar o cérebro, se não roubará a energia tão duramente recuperada.
Faz sentido, admite Herculano.
-- E como os ares frescos e salitrados do arraial são essenciais à recuperação, prescrevo ainda uma hora de passeio matinal pela praia.
Não! Protesta o marido consigo mesmo enquanto observa o indecifrável fechar de olhos da mulher.
-- Após o passeio, deverá tomar um copo de leite e realizar a higiene pessoal. Se estas prescrições forem seguidas à risca, Capitão, em quarenta dias, poderá levar sua família de volta para Botafogo.
-- Quarenta dias?
-- É o tempo necessário para a energia do cérebro se estabilizar. 
Quarenta dias, pensa Páscoa, inebriada com tamanha eternidade.
Os homens saem. Quitéria corre para providenciar-lhes café. Páscoa caminha para a janela. Sofia a segue e, como ela, apoia as mãos no parapeito. Timidamente, os rostos se voltam um para o outro. Nos olhos da mãe, a filha reconhece o olhar do retrato de quando Páscoa se casou; nos da filha, a mãe enxerga os pedidos de alegria que a sua melhora suscita. O calor eclode dentro da mulher com a percepção do peso dessa solicitação que também é sua. Mas há a esperança de ser capaz de nutrir a si mesma e a menina da felicidade possível. Não vou falhar dessa vez. Os rostos se voltam para a claridade do dia. Ondas em crinas brancas atravessam o mar azul.


Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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