segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Capítulo Quatro

PICO INSTANTÂNEO DE UM ÚNICO FUROR


O lento abrir e fechar dos olhos não define se Páscoa está quase a dormir ou prestes a despertar, nem a penumbra do ambiente lhe revela se entardece ou amanhece. Pouca diferença faz para tamanha reclusão. Nesse abrir e fechar de pálpebras, ela vê a sanca branca de desenhos ondulados... Adormece.
No aposento vizinho, Sofia está sentada em sua cama, com a janela aberta para a tarde que cai. Retira um retrato de dentro de uma caixa revestida com um tecido floral desbotado. Na fotografia, os pais posam juntos. A mão de Páscoa se apoia sobre o antebraço de Herculano, dobrado em frente do próprio corpo. O pai emana sóbria responsabilidade e exibe, na lapela da bem talhada farda de tenente de então, um pequeno ramo de delicadas flores. Páscoa usa um elegante vestido escuro e um véu branco de bordas que lhe roçam os ombros. Preso por uma tiara de flores de laranjeira, idênticas à da lapela do marido, o véu emoldura o jovem rosto. Uma chispa de sorriso ilumina a curiosidade do olhar. A menina suspira inundada de amor.
Revira a caixa e pega uma foto de quando era bebê, sentada no colo do pai e com a mãe de pé ao lado, com um semblante triste. Consternada, acaricia a foto e toca em outra na qual está sozinha com Herculano. Embaralha essa imagem em meio à ausência inscrita nos poucos retratos ali guardados. Páscoa preferiu assim. Não quis registrar para sempre a tristeza de uma vida na qual não se encaixava pela rigidez das normas e pela própria incapacidade de ser feliz com o que possuía. Lágrimas nascentes embaçam a visão de Sofia, mas uma esperança brilha – e a menina corre na direção do que concretizará essa esperança. Da janela, contempla o mar, certa de que aquela imensidão de mistérios irá curar a mãe, assim como o susto faz passar o soluço.
No quarto vizinho, o mar também se faz presente de maneira onipotente. Transformou a cama na pequena parte descoberta de um platô, de onde Páscoa fita a fúria das ondas. A cada estrondo, ergue-se um paredão de espumas brancas, enquanto águas violentas avançam em sua direção. Acuada, teme ser arrastada, engolida, dissolvida por essa voracidade. Outra vaga levanta-se, mais alta, mais forte, e se quebra sobre Páscoa, arrastando-a em seu turbilhão. Submersa, debate-se em busca de ar. Pernas e braços se agitam e impulsionam o corpo no caminho de volta. Mas ao romper a superfície espumante, é alcançado por novo repuxo. Mulher e onda transformam-se num pico instantâneo de um único furor. A vaga volta-se sobre si mesma, Páscoa cai e é engolida pela arrebentação. Quer gritar, mas a voz lhe falta.
Sôfrega, acorda. Olha para as mãos, para as pernas, para o cômodo e deixa a cama. A ação traz a vertigem. Apoia-se num móvel, em outro, na parede e chega até a porta que não se abre. Exaspera-se. Em passos cambaleantes, alcança a janela, descerra a cortina, abre as venezianas e inspira o ar da noite que cobre o mar do seu destino. Quando isso terá fim?


Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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