PICO INSTANTÂNEO DE UM ÚNICO FUROR
O
lento abrir e fechar dos olhos não define se Páscoa está quase a dormir ou
prestes a despertar, nem a penumbra do ambiente lhe revela se entardece ou
amanhece. Pouca diferença faz para tamanha reclusão. Nesse abrir e fechar de
pálpebras, ela vê a sanca branca de desenhos ondulados... Adormece.
No
aposento vizinho, Sofia está sentada em sua cama, com a janela aberta para a
tarde que cai. Retira um retrato de dentro de uma caixa revestida com um tecido
floral desbotado. Na fotografia, os pais posam juntos. A mão de Páscoa se apoia
sobre o antebraço de Herculano, dobrado em frente do próprio corpo. O pai emana
sóbria responsabilidade e exibe, na lapela da bem talhada farda de tenente de
então, um pequeno ramo de delicadas flores. Páscoa usa um elegante vestido
escuro e um véu branco de bordas que lhe roçam os ombros. Preso por uma tiara
de flores de laranjeira, idênticas à da lapela do marido, o véu emoldura o
jovem rosto. Uma chispa de sorriso ilumina a curiosidade do olhar. A menina
suspira inundada de amor.
Revira
a caixa e pega uma foto de quando era bebê, sentada no colo do pai e com a mãe
de pé ao lado, com um semblante triste. Consternada, acaricia a foto e toca em
outra na qual está sozinha com Herculano. Embaralha essa imagem em meio à
ausência inscrita nos poucos retratos ali guardados. Páscoa preferiu assim. Não quis registrar para sempre a tristeza
de uma vida na qual não se encaixava pela rigidez das normas e pela própria
incapacidade de ser feliz com o que possuía. Lágrimas nascentes embaçam a visão
de Sofia, mas uma esperança brilha – e a menina corre na direção do que concretizará
essa esperança. Da janela, contempla o mar, certa de que aquela imensidão de
mistérios irá curar a mãe, assim como o susto faz passar o soluço.
No
quarto vizinho, o mar também se faz presente de maneira onipotente. Transformou
a cama na pequena parte descoberta de um platô, de onde Páscoa fita a fúria das
ondas. A cada estrondo, ergue-se um paredão de espumas brancas, enquanto águas
violentas avançam em sua direção. Acuada, teme ser arrastada, engolida,
dissolvida por essa voracidade. Outra vaga levanta-se, mais alta, mais forte, e
se quebra sobre Páscoa, arrastando-a em seu turbilhão. Submersa, debate-se em
busca de ar. Pernas e braços se agitam e impulsionam o corpo no caminho de
volta. Mas ao romper a superfície espumante, é alcançado por novo repuxo.
Mulher e onda transformam-se num pico instantâneo de um único furor. A vaga
volta-se sobre si mesma, Páscoa cai e é engolida pela arrebentação. Quer
gritar, mas a voz lhe falta.
Sôfrega, acorda. Olha para as mãos, para as
pernas, para o cômodo e deixa a cama. A ação traz a vertigem. Apoia-se num
móvel, em outro, na parede e chega até a porta que não se abre. Exaspera-se. Em
passos cambaleantes, alcança a janela, descerra a cortina, abre as venezianas e
inspira o ar da noite que cobre o mar do seu destino. Quando isso terá fim?
Copyright © 2013
by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by
Maria Tereza O. S. Campos
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