TANTA INCAPACIDADE
Transcorrida a
semana, Herculano retorna para o arraial de Copacabana. Entra no sobrado e
observa a sala impecavelmente arrumada: as flores no vaso, as almofadas sobre o
sofá, a mesa posta para o jantar. Escuta os ruídos das panelas movimentadas por
Quitéria na cozinha. O tempero refogado chia, o cheiro alcança o ambiente e o
apraz, em outro sinal da rotina acolhedora, na qual só falta a figura da esposa
bordando serenamente a sua espera. Mira o alto da escada. A perspectiva de ter de encarar o desalento lá em cima
sombreia seu rosto. Investe-se de paciência e segue para o inevitável. Encontra
Páscoa recostada na cama. Olham-se. Calado, depõe um jornal sobre a cômoda e a
maleta sobre a arca. Só então fala.
-- Como se
sente?
-- Não bem.
-- Reaja, não se
entregue assim, diz e dá as costas para o leito. Desabotoa o casaco, conferindo
com o olhar a conformidade do ambiente. A mulher pede:
-- Por favor,
cancele a visita do médico.
-- Sabe que não
posso, responde, pendurando, com esmero, o casaco no cabide. Depois afrouxa o
colarinho da camisa e se volta para a esposa. -- Esteja de pé amanhã para
receber o Dr. Eugênio e evitará o constrangimento desse banho de mar. Se não
puder fazer isso por mim, faça-o por Sofia.
O peito de
Páscoa aperta e ela desvia o rosto. Ele se aproxima.
-- É assim que
mostra amor pela própria filha?
Não obtém
resposta. À beira da repulsa, senta-se na borda da cama e observa o fastio ali deitado.
-- Não percebe
que arruina nossa vida com esta prostração obstinada?
Mais uma vez, o
silêncio se faz. Irritado, vira-a pelos ombros.
-- Por quê? Por
que não reage?
Páscoa fecha os
olhos. O gesto incita a raiva no marido, que a sacode.
-- Em nome do
bom senso que sobrou em você, responda!
Tumultuado com a
própria agressividade, larga a esposa e se afasta, enquanto Páscoa se enrodilha, enlaçando as pernas e
repetindo em silêncio que não pode agir assim, que não pode se soltar desse
modo completo, que não pode, não pode se rebelar.
Apoiado na
cômoda, Herculano busca se controlar. UM
BARRACO DE MENOS – parece gritar a legenda da caricatura do jornal diante
dos seus olhos. Impossível deixar de se enojar perante o desenho do prefeito,
obstinado em desalojar pessoas que não têm onde morar. Inevitável lembrar-se
das lutas a travar para conquistar o lugar almejado no mundo. Fatal deparar-se
com a sua necessidade de voltar para casa a cada noite, tirar a armadura e se
recompor, em paz, para a batalha do dia seguinte.
-- Apenas um
lar. É só o que peço, desabafa Herculano antes de sair.
Se eu pudesse, pensa Páscoa,
tomada pelas lembranças de quanto quis criar esse lar, de quanto se empenhou
para iluminar o rosto do marido a cada retorno e ser iluminada pela rara luz
dos olhos dele. Como desejou que essa luz aclarasse as trilhas do abrandamento
de regras sufocantes. Quem sabe, se nutrida pela intimidade nascida desse abrandamento,
talvez não tivesse se desatado de tudo o que ama e sucumbido à prostração que
diminui a dor de sentir as horas, os dias, os anos de tanta incapacidade. O que
fazer? Deixar todos de vez? A própria vida? Ser engolida pelo mar?
A imagem do
globo terrestre, de base de madeira e régua de prata, companheiro dos anos do
internato e guia das inúmeras rotas que traçou para viagens tão sonhadas e
jamais realizadas, rompe a névoa do torpor. Países coloridos e oceanos azuis
giram e embalam Páscoa em seu abandono, enquanto Herculano e Sofia sentam-se em
silêncio à mesa do jantar.
Copyright © 2013
by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by
Maria Tereza O. S. Campos
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