domingo, 23 de novembro de 2014

Capítulo Dois

O BANHO DE MAR PRESCRITO


      Dr. Eugênio, homem grande, de ombros largos, andar firme e ar autoritário, atravessa o feixe de luz da manhã que vaza pela claraboia do corredor do sobrado. Carrega uma valise de couro marrom na qual brilha uma fechadura dourada. Médico formado na Europa, com especialização nos Estados Unidos da América, desfruta da fama de saber tudo sobre doenças femininas. Os moradores da casa o seguem.
Em sua farda de capitão, Herculano controla o desconforto de ter uma mulher que sofre de um mal incerto. Próxima do pai, vem Sofia, que olha para as costas enormes do médico. A cada visita, o doutor lhe parece mais bravo e ameaçador. Quitéria e Tião do Congo são os últimos da formação. Ex-escravos, sexagenários, foram comprados, alforriados e agregados à família pelo pai de Páscoa. Enquanto anda, Quitéria contorce as mãos sobre o peito farto e apela em silêncio para que os deuses daqui e do além-mar protejam a menina que viu nascer e que cuidou como se fosse sua, após a mãe morrer ao dar à luz. Já Tião, cabisbaixo, carrega a suspeita do mal que aflige a sinhá. Contudo, nunca conseguiu entender de qual cativeiro o espírito dela quer se libertar e para qual pátria quer voltar, porque, para ele, é banzo o que ela tem e, como foi com muitos dos seus, teme que seja mortal. Tião para à porta. Não cabe a ele entrar.
Dr. Eugênio irrompe no quarto.
– Ora, pois, D. Páscoa, não está de pé para me receber?
 Indiferente ao silêncio da paciente, põe a valise sobre a cômoda e fita a caricatura impressa num jornal que ali está. Os Passos de Passos diz a legenda do desenho de um idoso, que, em trajes elegantes e ar enfurecido, anda sobre uma monte de gente brava, aprisionada pelos próprios corpos. O médico balança a cabeça em desaprovação à sátira, gira o corpo e ordena, batendo as mãos:
– Ano Novo, vida nova, minha cara! Vamos, levante-se.
Páscoa não se mexe, para irritação contida de Herculano. . 
– O tratamento tem sido seguido à risca?
– Tem sim, responde a ama ao doutor.
– Interessante! Nada de bordado, leitura ou escrita?
– Nadinha de nada.
– Sem visita, nem companhia? – Insiste o médico com os olhos cravados no rosto de Sofia, que treme de medo de que sejam descobertas suas incursões até a mãe.
– Nenhumazinha – responde Quitéria, convencida de ser uma injustiça chamar de visita os minutinhos que consente à pequena passar ali no quarto.
– Sei. D. Páscoa tem estado em isolamento completo.
– Como o senhor recomendou – fala Herculano, irritado com o interrogatório. – Eu mesmo só a vejo quando venho acompanhar vossa visita.
– Nem autoriza uma saída para uma prosa na varanda ou quem sabe para tomar a fresca da tarde?
– Não.
Dr. Eugênio fita um, fita outro e depois Páscoa. Inclina seu corpo para trás, como se a maior perspectiva ampliasse sua capacidade de análise, então, aproxima-se.
– Caríssima, escute-me bem. Contarei até cinco. Se, no número cinco, a senhora não se levantar, eu mesmo a boto de pé.
A contagem começa. De modos diferentes, as mulheres se perguntam como Herculano permite ao médico agir como o senhor da casa. Acontece que elas não conseguem ver na sua feição um traço sequer do esforço que ele faz para se conter ante aquela arrogância. Tanto que Herculano decide se retirar a ser confrontado com o que está por vir. Tarde demais. A contagem termina e, num rompante, Dr. Eugênio apossa-se do corpo de Páscoa e o retira da cama.
O marido retesa-se diante da mulher vergada sobre aquele braço, como uma boneca de pano rota e desconjuntada. Quitéria cobre o rosto com as mãos. Sofia abraça a si própria, aterrorizada. Tião aguarda, compungido, em alerta.
– Endireite-se, D. Páscoa.
Qual o quê! Tronco, cabelos, pernas e braços continuam tombados – e a paciente decidida a não se render ao seu algoz.
 – Se D. Páscoa se recusa a ouvir a voz da razão, que enfrente a força do mar.
Dr. Eugênio solta o braço: o corpo da paciente se agita em busca de amparo e cai. Herculano esboça um movimento de socorro...
– Fique onde está, Capitão – ordena o médico, com a mão espalmada para o alto. Uma vez obedecido, olha para a mulher largada aos seus pés, como uma trouxa de roupa, e esgrima os detalhes da prescrição: – Minha cara, três imersões a esperam, e de cabeça para baixo, se não melhorar até a visita da próxima semana.
Por um instante, os olhos de Páscoa, prostrada no chão, e os de Herculano, com o tronco ainda inclinado pelo socorro imobilizado no ar, se encontram, transbordando apelos impotentes.
Empertigado, Dr. Eugênio se afasta. Quitéria o ajuda a se recompor, ávida por sua partida. Os homens saem do quarto, com Tião atrás, receoso do que está por vir. Sofia permanece parada, com os dedinhos presos à borda da cortina fechada e os pensamentos agitados de mar: as ondas, os peixes, as conchinhas... Como tudo será?  


Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
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