sábado, 4 de julho de 2015

Capítulo Cento e Doze

AVANÇA, FRAQUEZA DE GOVERNO.


Ainda está escuro quando o Chefe de Polícia lê as manchetes dos jornais que logo chegarão às ruas. Começa o dia mais cedo. As notícias, em primeira mão, também despertam outras autoridades. O presidente convoca uma reunião extraordinária.
A caminho do Palácio, Theodoro passa os olhos no artigo de Apolônio Cidadão, sem entender como Herculano teve cabeça para escrever. Cogita que ele não recebeu a encomenda. Deixa o jornal de lado e pensa em jogadas para mover as peças do tabuleiro a favor dos seus objetivos.
Algum tempo depois, pessoas se reúnem no Largo de São Francisco, indiferentes à proibição dos comícios. Herculano e Brito observam a concentração. Os Materialistas e os Bons de Briga se distribuem pelas margens do Largo e Juliano, Zé da Baiana e os outros escudeiros, pelo centro do espaço. Estudantes mobilizam pedestres para ouvir o comício da Liga contra a Vacina, que começará ali em breve. Em cada esquina, guardas a cavalo estão atentos à insubordinação popular.
Em passos apressados, Pinto de Andrade aproxima-se de Herculano e Brito.
-- O comício foi mudado para amanhã à noite, no CCO.
-- Por quê?
-- Não sei dizer. Só me mandaram dar o recado e falar que qualquer coisa é pros senhores irem pra lá – responde e se afasta.
-- O que pode ter acontecido?
-- Seja o que for, não justifica, responde Herculano a Brito.
-- E agora, como fica essa gente toda?
-- Terão o protesto que vieram ouvir.
-- Você não irá discursar.
-- Não. Minha hora não chegou. Mas os alunos podem e quem mais quiser.
-- A coisa pode ficar feia, Herculano. Os guardas nem piscam de tensão.
-- Pois eles que decidam o lado em que querem lutar.
-- Não se trata de decisão, mas de obrigação.
-- Que façam corpo mole. Vamos.  Não há tempo a perder.
Caminham pelo Largo, onde as picaretas já trabalham. No centro, a estátua de José Bonifácio, o Patriarca da Independência, se destaca sobre um alto pedestal com degraus ao redor. Herculano conversa com os estudantes, depois, com a tropa popular. Retira Juliano e Zé da Baiana de uma das fileiras.
-- Serão mais úteis como mensageiros.
-- O senhor que manda, diz Flecha Negra.
Enquanto o grupo penetra um casarão desocupado, no Palácio, o presidente se reúne com Theodoro, Oswaldo Cruz e o Ministro Seabra. Pede certezas científicas para defender a vacina e um discurso único sobre a necessidade da sua obrigatoriedade.
-- Impossível essas visões distintas, ainda mais dentro do governo. Espero que cumpram vossas missões a contento. Essa torre de babel não pode continuar.
O trio compromete-se em convocar a comissão de saúde para afinar o discurso e também analisar os regulamentos.
-- Quanto ao comício, presidente, alguma orientação?
-- Mantenha a força na rua pronta para intervir caso haja badernas.
A orientação presidencial chega ao Largo em momento de grande animação. Aos pés do Patriarca da Independência, mímicas substituíram as palavras de protestos. Já houve morras ao chefe de polícia Sonso, ao prefeito Bota-Abaixo e ao Diretor de Saúde Mata-mosquito e, neste instante, o morras é para o presidente Soneca. A autoridade policial decide acabar com a fuzarca e manda guardas retirar o orador do momento.
À medida que os guardas se aproximam, crescem as vaias e as provocações dos manifestantes. Pé na Medalhinha entra em ação. Tira uma navalha e ordena.
-- Abre espaço, minha gente, porque o rabo-de-arraia vai chispar.
Outro do grupo dos Bons de Briga, Juca Pancada, também se põe em ação.
-- Avança fraqueza de governo.
Senha dada, corpos se atracam e a luta encrespa o mar de gente. O policial em comando ordena a carga da cavalaria que se desloca com sabres em punho. Os Materialistas lançam pedras na retaguarda da tropa. A investida inesperada desorienta os alvejados. O revide desorganiza a configuração no Largo. Pelos flancos e dianteira da cavalaria, a enxurrada humana vaza, em fluxos para a fuga e refluxos para o contra-ataque com ferros e paus das demolições. Gritos, xingamentos e rojões soam, vidros estilhaçados se transformam em armas, estabelecimentos fecham as portas, tiros espocam e o sangue jorra.
Da janela do casarão, Herculano instrui Juliano e Zé da Baiana a impulsionarem o recuo dos rebeldes pelas ruas estreitas tomadas pelas obras. Ordem cumprida, o espaço reduzido impede o encalço compactado da cavalaria e favorece a corrida dos rebeldes. Às janelas e das soleiras das portas, curiosos assistem à fuga. Satisfações desabrocham.
-- O governo pensa que pode tudo! Tá aí o troco.
-- Bananas, isso nós não somos.
Reprovações também se expressam.
-- Obra de vagabundos, de empreiteiros da arruaça.
-- Decerto. O povo verdadeiro é cordato.
Os tumultos se prolongam pela manhã. 

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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