MALDITA!
Escola Militar. Herculano
acaba de chegar ao gabinete. Fecha a porta com a atenção atraída por uma
inesperada e pequena caixa sobre a escrivaninha. Aproxima-se. Dispõe o jornal e
a pasta na mesa, constata a ausência de cartão e pega o objeto. Sente o peso e
vira a caixa de um lado para o outro. Nada se desloca dentro. Remove a
embalagem e a tampa. Estranha o conteúdo: uma sacolinha de veludo carmim.
Retira a peça e a aperta: terra?!
Desenlaça a fita e despeja o volume sobre o jornal. Cai areia de praia e,
junto, uma minúscula concha rosada. O banho de mar lhe vem à mente. O coração
dispara, o sangue esquenta e pensamentos penosos o assaltam. Resiste a admitir
a infidelidade da mulher, a falha de Tião em vigiá-la, a própria estupidez.
Num impulso, retorna à
porta, mas não chega girar a maçanete, detido pela percepção de que não deve investigar
quem recebeu, nem que entregou aquela remessa na Escola. Pensa em adversários e
na intenção de vergá-lo quando mais precisa de tranquilidade. A imagem de
Theodoro lhe surge e a dúvida de ser um cornudo detona a agonia. Tenta
controlar a emoção. Ostentar o sangue frio que o inimigo supôs que não
possuísse. Não pode dispersar sua concentração depois de uma vida inteira dispendida
em preparações para triunfar como o esperado para breve.
Enxerga-se na Avenida, à
testa da mocidade militar, em altivez marcial alteada pelo dólmã de gala, com
seus botões dourados, suas insígnias e medalhas a reluzir. Vê a tropa popular à
espera do seu comando, o presidente em vias de ser rendido e ele próprio
prestes a consolidar o significado da sua existência. Tudo soa, ressoa e vibra
dentro dele: o tilintar dos sabres, o rumor das esporas, o clamor da população.
Sente os olhares sobre si durante essa evolução marcial e ouve: venceu na rua, perdeu dentro de casa.
Toda a honra, todo o mérito, tudo roubado por uma traição. Maldita!
Deixa a sala. A cavalo,
parte para o areal do Leme, em ódio glacial. Quer penetrar com calma o antro da
perdição, fechar a porta com polidez e, aí sim, arrebentar o pulha. Estourar
seus dentes, seu nariz, seu escroto. Fazer o verme engolir aquela concha e depois
partir para acertar as contas com a infiel.
No território da injúria,
obtém com um passante o endereço de Grego. Ultrapassa a cerca de madeira,
atravessa o jardim da casa recuada – Pã não aparece. Confere a porta, que se
abre.
Na sala solitária, mira o canapé no qual o safardana com certeza possuiu sua mulher debruçada sobre aqueles gomos vastos. Pisa o assoalhado de tábuas largas onde indubitavelmente corpos nus rolaram, em luxúria compatível à desejada pela adúltera. Até que o olhar granítico pousa na mesa de jacarandá que, sem sombra de dúvida, também serviu o esfomeado cio da lascívia.
Na sala solitária, mira o canapé no qual o safardana com certeza possuiu sua mulher debruçada sobre aqueles gomos vastos. Pisa o assoalhado de tábuas largas onde indubitavelmente corpos nus rolaram, em luxúria compatível à desejada pela adúltera. Até que o olhar granítico pousa na mesa de jacarandá que, sem sombra de dúvida, também serviu o esfomeado cio da lascívia.
Entra no espaço contíguo.
O material de luteria informa que o rival não é apenas um banhista. Esclarecido
pela lembrança do apreço musical de Azulão, entende que foi enganado também
pelo menino. Pega uma flauta como se pegasse um porrete. Com o instrumento,
dirige-se ao quarto.
A cama desfeita, os
travesseiros espalhados, os repuxos do lençol são mais que uma desordem. São
outros vestígios do coito com a perfídia. Sente cheiro de sexo no ar e se
depara com a foto de Páscoa encostada à parede, sobre uma cômoda. Dos píncaros da moral, o
sentido de hombridade desmorona. O ódio o soergue. Lança o porta-retratos no
chão que bate no pé da cama e cai com o dorso virado para cima. Em fundo azul
brilhante, uma iluminura expõe a doçura de uma madona idêntica a que a mãe
possuía. Não consegue estraçalhar o objeto com a sua bota. Quebra a flauta no
joelho, põe o porta-retratos sobre a cômoda, e, sobre o retrato de Páscoa, cruza
os pedaços do instrumento musical. Sai.
No casarão, tenta em vão
extrair da mulher a confissão da sua traição. Tranca-a no quarto e volta para a
Escola. As recordações da caixa sobre a mesa, do indômito silêncio da traidora,
da sua própria violência, tudo o tortura. Da suspeita de Theodoro ser o
satânico arauto da infidelidade impera a certeza de que quis derrubá-lo com a
arma do acinte. Como um projétil, a certeza zune, ricocheteia e descortina o
objetivo adicional de mostrar como as forças ingovernáveis da natureza solapam
a marcha evolutiva da humanidade. O ódio à Páscoa, a Grego, a todos os abjetos
do país, converge para Theodoro: o demoníaco mensageiro da impossibilidade dos ideais: Que pense
que me venceu. Sobrevivi a Canudos, sobrevivo a qualquer descalabro. Sou ferro
moldado à forja das adversidades, à bigorna do método e da disciplina.
República, não me abandone.
Copyright © 2013
by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema
e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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