sábado, 11 de julho de 2015

Capítulo Cento e Vinte e Um

DA MARCHA INSURRETA


Na noite escura, abeirado das águas da Guanabara, o Morro do Pasmado é uma muralha sinistra no meio do caminho das forças oponentes. A tropa legal o contorna pela face da praia de Botafogo, enquanto a rebelde, o margeia pela praia da Saudade. Em ambas as tropas, olhos carregados de tensão miram o flanco interno do Morro, bordejado pela sinuosa Rua da Passagem. Ao longo do percurso, o breu se rarefaz em pontos esparsos pela luz fraca que vaza da veneziana de uma e outra moradia. Mas nenhuma janela se abre para conferir a razão do tropeado.
Travassos estanca a marcha na desembocadura da Rua. Ordena o aluno-alferes Silvestre levar uma mensagem ao comandante legalista. O jovem trota com alguns soldados. Não demora Piragibe ouvir o som das esporas adversárias.
-- Alto lá. Quem vem?
-- É um camarada. Trago o pedido do general Travassos para conferenciar.
Nervoso e revoltado, Piragibe decide infringir as regras marciais e tirar partido de baioneta em descanso para a conferência. Ordena o ataque.
O piquete também descarrega. Silvestre é alvejado. Cavalga de volta, entregue à condução do próprio normal. Morre junto à tropa.
Travassos abre fogo. Projeteis riscam o ar e o confronto ecoa longe. De repente, as armas silenciam. O major Possidônio, do lado legalista, se vê rodeado apenas por alguns soldados. Do comandante Piragibe aos praças, todos desapareceram. Não sou morcego para lutar no escuro, pensa Possidônio e debanda com os demais.
A recorrência dos vultos em carreira chama a atenção do coronel Galvão à espera na retaguarda. Entende que há uma dispersão em curso. Assume a vanguarda.
Os minutos de trégua se sucedem com confabulações nos dois lados da contenta. Ninguém acha Sodré e Varela na tropa rebelde. Herculano imagina a fuga dos dois. Porém alguém fala que Sodré fora alvejado.
-- Em frente, General, ousa o Capitão dizer a Travassos.
-- Vamos tentar primeiro reduzir as perdas, oficial, responde o comandante.
Envia um mensageiro à força legalista. É atendido. Acompanhado de Herculano e de um piquete, encontra-se com coronel Galvão no meio da Rua da Passagem.
-- Em nome da salvação nacional, una-se ao exército revolucionário.
-- Sou um militar leal ao governo e hei de cumprir o meu dever.
-- Pois bem, oficial, cumpra o seu dever que eu irei cumprir o meu.
Os comandos retornam para suas formações e o ataque reinicia-se.
Por mais de meia hora, a troada é intensa. Depois as descargas tornam-se intervaladas e cessam do lado legalista, desfalcado por mais deserções. Travassos instrui Herculano, que se afasta para reorganizar a retaguarda. Na tropa legalista, Galvão recua pela Rua da Passagem. Por onde passa, reúne seu reduzido pelotão.
A notícia do recuo da tropa legal chega ao Palácio do Catete, ocupado por ministros, funcionários graduados e políticos. Receosos com o destino do governo, a boca miúda alguns especulam sobre a conveniência de afastar o presidente. O perigo lhes parece maior quando Silva Castro penetra a sala de reunião da presidência.
-- Estamos sendo vencidos. Ninguém entra na Saúde tomada pelos rebeldes. A Marinha perde na Praça da Harmonia e a Brigada Policial, na Rua do Regente.
Vozes se atropelam.
-- Como é possível? Essa gente não tem instrução militar?
-- Temos de admitir, senhores, fala Theodoro. -- A revolta contaminou nossas forças regulares. Estão medidos entre os populares.
-- Isso é um absurdo, responde um comandante da Marinha.
-- Sem contingentes leais urge convocar a Guarda Nacional, fala Silva Castro.
O nervosismo se amplia com a entrada de Piragibe.
-- A maioria dos meus homens desertou. Galvão está na Praia de Botafogo, sem condições de combate. Preciso de soldados e boas armas, se não, esperem o pior.
O pânico se apodera das autoridades. O presidente vislumbra a segurança palaciana destroçada e a insurreição subindo as escadas para depô-lo. Theodoro pensa nas perdas econômicas e o ministro da marinha recomenda o embarque imediato do presidente em um navio de guerra.
-- Estará mais seguro para organizar a defesa do mar.
-- Discordo, fala Theodoro. Sair é entregar o poder de mão beijada.
-- Ao contrário. Teremos condições melhores de proteger o governo.
Inicia-se a discussão, com a maioria favorável à retirada do presidente.
-- É uma medida ditada pela prudência.
-- Não é desonroso defender a legalidade de um navio.
-- Não é questão de honra, e sim de luta.
Em meio à celeuma e ao próprio temor, Rodrigues Alves mantém-se quieto com olhar lampejante. Mentalmente passa em revista seu mandato. A firmeza com que tem enfrentado os interesses do setor cafeeiro; o empenho em defender a saúde financeira do país; o desprendimento em sacrificar sua popularidade para modernizar a Capital Federal. Fita as autoridades por detrás do pincenê.
-- Senhores, se minha família quiser tomar uma lancha e partir para um local seguro, peço que providências sejam tomadas. Mas eu fico, sejam quais forem os perigos que eu estiver exposto. Do Palácio só saio após a sucessão ou morto. Movam-se. Animem os soldados, estabeleçam novas táticas, defendam o governo. Reforços estão chegando. Temos todos os elementos para vencer este momento.
Theodoro gosta dessa firmeza.
Enquanto planos são delineados para enfrentar o lado militar e o popular da revolta, Travassos ordena o avanço. Herculano vem à testa do segundo pelotão. À medida que avançam sem resistência, cresce a segurança de que aniquilaram a força adversária. De repente, o general tomba junto com a sua montaria, alvejada por uma descarga certeira. Os oficiais ao redor ficam aturdidos. A notícia corre de boca em boca até Herculano, que toma à dianteira. Percebe a insegurança do grupo quanto ao futuro do golpe e enxerga no vazio do comando a oportunidade almejada. Ordena a remoção do general ferido e o retrocesso, depois despacha um batedor para averiguar as condições à frente. Então roda o cavalo e alcança o recua.
-- Valentes soldados! Até aqui a vossa bravura tem combatido a alienação dos colegas à nossa causa. Na cidade, o destemor de nossos patrícios civis derrotam outras inconsciências. A salvação nacional depende da coragem de todos. Vamos em frente depor o inútil governo, assumir o poder e abraçar os nossos irmãos. Em marcha, exército revolucionário. Até a vitória final!
Brados patrióticos legitimam o comando do Capitão. Retomam a marcha pela Rua da Passagem. Ao final da curva do morro, descortina-se a praia de Botafogo com sua curva longa e reentrante. Granadas são lançadas adiante. Nenhum grito se ouve. Herculano ordena avançar em carreira. Trota na linha de frente já se vendo no comando da nação brasileira. Seu cavalo desenvolve velocidade crescente quando então soam estampidos. Na montaria galopante, o tronco do Capitão pende para trás, com o peito alvejado. Emboscada – pensa antes de mergulhar o torpor. O escuro se transforma em névoas claras, o silêncio reconforta e a Soberana do Povo surge como se erguida da terra, em braços que se elevam e acolhem a sua queda. Enlaçado, cabeça deitada no colo, Herculano sente a maciez morna dos seios e contempla República, linda, amorosa. Morre com o sorriso dela em seus olhos. 

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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