DA MARCHA INSURRETA
Na noite escura, abeirado das águas da Guanabara, o
Morro do Pasmado é uma muralha sinistra no meio do caminho das forças
oponentes. A tropa legal o contorna pela face da praia de Botafogo, enquanto a
rebelde, o margeia pela praia da Saudade. Em ambas as tropas, olhos carregados
de tensão miram o flanco interno do Morro, bordejado pela sinuosa Rua da
Passagem. Ao longo do percurso, o breu se rarefaz em pontos esparsos pela luz
fraca que vaza da veneziana de uma e outra moradia. Mas nenhuma janela se abre
para conferir a razão do tropeado.
Travassos estanca a marcha na desembocadura da Rua.
Ordena o aluno-alferes Silvestre levar uma mensagem ao comandante legalista. O
jovem trota com alguns soldados. Não demora Piragibe ouvir o som das esporas adversárias.
-- Alto lá. Quem vem?
-- É um camarada. Trago o pedido do general
Travassos para conferenciar.
Nervoso e revoltado, Piragibe decide infringir as
regras marciais e tirar partido de baioneta em descanso para a conferência.
Ordena o ataque.
O piquete também descarrega. Silvestre é alvejado.
Cavalga de volta, entregue à condução do próprio normal. Morre junto à tropa.
Travassos abre fogo. Projeteis riscam o ar e o
confronto ecoa longe. De repente, as armas silenciam. O major Possidônio, do
lado legalista, se vê rodeado apenas por alguns soldados. Do comandante
Piragibe aos praças, todos desapareceram. Não
sou morcego para lutar no escuro, pensa Possidônio e debanda com os demais.
A recorrência dos vultos em carreira chama a atenção
do coronel Galvão à espera na retaguarda. Entende que há uma dispersão em
curso. Assume a vanguarda.
Os minutos de trégua se sucedem com confabulações
nos dois lados da contenta. Ninguém acha Sodré e Varela na tropa rebelde.
Herculano imagina a fuga dos dois. Porém alguém fala que Sodré fora alvejado.
-- Em frente, General, ousa o Capitão dizer a
Travassos.
-- Vamos tentar primeiro reduzir as perdas, oficial,
responde o comandante.
Envia um mensageiro à força legalista. É atendido.
Acompanhado de Herculano e de um piquete, encontra-se com coronel Galvão no
meio da Rua da Passagem.
-- Em nome da salvação nacional, una-se ao exército
revolucionário.
-- Sou um militar leal ao governo e hei de cumprir o
meu dever.
-- Pois bem, oficial, cumpra o seu dever que eu irei
cumprir o meu.
Os comandos retornam para suas formações e o ataque
reinicia-se.
Por mais de meia hora, a troada é intensa. Depois as
descargas tornam-se intervaladas e cessam do lado legalista, desfalcado por
mais deserções. Travassos instrui Herculano, que se afasta para reorganizar a
retaguarda. Na tropa legalista, Galvão recua pela Rua da Passagem. Por onde
passa, reúne seu reduzido pelotão.
A notícia do recuo da tropa legal chega ao Palácio do
Catete, ocupado por ministros, funcionários graduados e políticos. Receosos com
o destino do governo, a boca miúda alguns especulam sobre a conveniência de
afastar o presidente. O perigo lhes parece maior quando Silva Castro penetra a
sala de reunião da presidência.
-- Estamos sendo vencidos. Ninguém entra na Saúde
tomada pelos rebeldes. A Marinha perde na Praça da Harmonia e a Brigada
Policial, na Rua do Regente.
Vozes se atropelam.
-- Como é possível? Essa gente não tem instrução
militar?
-- Temos de admitir, senhores, fala Theodoro. -- A
revolta contaminou nossas forças regulares. Estão medidos entre os populares.
-- Isso é um absurdo, responde um comandante da
Marinha.
-- Sem contingentes leais urge convocar a Guarda
Nacional, fala Silva Castro.
O nervosismo se amplia com a entrada de Piragibe.
-- A maioria dos meus homens desertou. Galvão está
na Praia de Botafogo, sem condições de combate. Preciso de soldados e boas
armas, se não, esperem o pior.
O pânico se apodera das autoridades. O presidente
vislumbra a segurança palaciana destroçada e a insurreição subindo as escadas
para depô-lo. Theodoro pensa nas perdas econômicas e o ministro da marinha
recomenda o embarque imediato do presidente em um navio de guerra.
-- Estará mais seguro para organizar a defesa do
mar.
-- Discordo, fala Theodoro. Sair é entregar o poder
de mão beijada.
-- Ao contrário. Teremos condições melhores de
proteger o governo.
Inicia-se a discussão, com a maioria favorável à
retirada do presidente.
-- É uma medida ditada pela prudência.
-- Não é desonroso defender a legalidade de um
navio.
-- Não é questão de honra, e sim de luta.
Em meio à celeuma e ao próprio temor, Rodrigues
Alves mantém-se quieto com olhar lampejante. Mentalmente passa em revista seu
mandato. A firmeza com que tem enfrentado os interesses do setor cafeeiro; o
empenho em defender a saúde financeira do país; o desprendimento em sacrificar
sua popularidade para modernizar a Capital Federal. Fita as autoridades por
detrás do pincenê.
-- Senhores, se minha família quiser tomar uma lancha
e partir para um local seguro, peço que providências sejam tomadas. Mas eu
fico, sejam quais forem os perigos que eu estiver exposto. Do Palácio só saio
após a sucessão ou morto. Movam-se. Animem os soldados, estabeleçam novas
táticas, defendam o governo. Reforços estão chegando. Temos todos os elementos
para vencer este momento.
Theodoro gosta dessa firmeza.
Enquanto planos são delineados para enfrentar o lado
militar e o popular da revolta, Travassos ordena o avanço. Herculano vem à
testa do segundo pelotão. À medida que avançam sem resistência, cresce a
segurança de que aniquilaram a força adversária. De repente, o general tomba
junto com a sua montaria, alvejada por uma descarga certeira. Os oficiais ao
redor ficam aturdidos. A notícia corre de boca em boca até Herculano, que toma
à dianteira. Percebe a insegurança do grupo quanto ao futuro do golpe e enxerga
no vazio do comando a oportunidade almejada. Ordena a remoção do general ferido
e o retrocesso, depois despacha um batedor para averiguar as condições à
frente. Então roda o cavalo e alcança o recua.
--
Valentes soldados! Até aqui a vossa bravura tem combatido a alienação dos
colegas à nossa causa. Na cidade, o destemor de nossos patrícios civis derrotam
outras inconsciências. A salvação nacional depende da coragem de todos. Vamos
em frente depor o inútil governo, assumir o poder e abraçar os nossos irmãos.
Em marcha, exército revolucionário. Até a vitória final!
Brados patrióticos legitimam o comando do Capitão.
Retomam a marcha pela Rua da Passagem. Ao final da curva do morro, descortina-se
a praia de Botafogo com sua curva longa e reentrante. Granadas são lançadas
adiante. Nenhum grito se ouve. Herculano ordena avançar em carreira. Trota na
linha de frente já se vendo no comando da nação brasileira. Seu cavalo
desenvolve velocidade crescente quando então soam estampidos. Na montaria
galopante, o tronco do Capitão pende para trás, com o peito alvejado. Emboscada – pensa antes de mergulhar o
torpor. O escuro se transforma em névoas claras, o silêncio reconforta e a
Soberana do Povo surge como se erguida da terra, em braços que se elevam e
acolhem a sua queda. Enlaçado, cabeça deitada no colo, Herculano sente a maciez
morna dos seios e contempla República, linda, amorosa. Morre com o sorriso dela
em seus olhos.
Copyright © 2013
by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema
e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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